Dona Aparecida




            Éramos três irmãos, uma mãe passiva e um pai de nervos exaltados. Cidade pequena do interior de Minas Gerais, trinta mil habitantes, para mais ou para menos (Piumhi, o “rio de muitos peixes”, ou talvez fossem moscas. Sabe-se lá o que pensaram os índios quando tomaram por esse nome). Eu já havia decorado todos os rostos e, como o ócio era o que me sobrava, ficava perambulando as ruas de pedra com amigos da escola. Não é a boa e velha época das bolinhas de birosca, como dizia meu pai, mas era um tempo em que resgatávamos desse ofício de ser criança de interior, um pouco da simplicidade da roça, no capim seco e no cheiro formoso de estrume de vaca. De cavalo não, porque fedia e me sujava o meio dos dedos. Aparecia ali no meio da calçada, sem avisar. Parece até que cavalo faz de propósito. Bicho de cidade pequena é esperta, desse jeito mesmo, porque sabe que precisa pensar pelos seus cavaleiros que bebem até tarde da noite e, quando não podem mais ser guiados pela sobriedade, são guiados por cascos bem entendidos do caminho.
            As janelas de casa eram de madeira, os vidros coloridos. Tinha a rede, um dos meus espaços merecidos, onde os pés ficavam pra cima e a cabeça pra baixo, até dar náusea. A grade cinza deixava aberta a visão para a rua e os compadres. Dava pra pedir emprestado um ovo, uma xícara de farinha e, quando ninguém estava ouvindo, trocavam-se mexericos.
            Mas, de todas as maravilhas e gostosuras do interior mineiro, eu gostava mesmo era de Dona Aparecida. Era a maior festa quando a avistava cruzando o horizonte, digo, a esquina. Usava um pijama azul com estampas, chinelo de plumas, e um arco pra segurar o cabelo curto e ralo, e assim andava pelo bairro, sem nenhuma vergonha. Velha, pobre dela, mal conseguia andar. Mas fazia aquilo com gosto, que dava até admiração.
            Se via a gente andando por aquelas ruas de pedras, logo tratava de dizer:
            - Vai com Deus, mocinho.
            Se não retribuísse o sacro cumprimento, logo ralhava.
            - Fale “vai com Deus também”, mocinho.
            Era devota a todos os santos e a Deus, e nunca, em nenhum dia, se esquecia do seu Criador, e meu também.
            Não se afobe não, que os senhores logo conhecerão a dona Aparecida. Não era senhora muito equilibrada, embora não seja isso um defeito. Louca, ela não era, mas era sozinha, trazia consigo a sofrida solidão debaixo daquela expressão banguela. Se me lembro bem, nunca a vi sorrir, não sei se por falta de motivos. Gostava de tocar campainha, penso eu, pois, quando colava o dedo enrugado no botão, não tinha pressa de tirar.
            Tinha um toque conhecido. Todo mundo logo sabia que a Dona Aparecida estava à espera. Gostava de chamar em todas as casas da rua, pedia para entrar, alegando “abre a porta pra mim cantar pra você”, dizendo como se fosse isso um argumento convincente. Era assim quase todos os dias.
            - Abre a porta, mocinho – ela pedia.
            Sempre assim. Se era menino, mocinho. Homem, “sinhor”. Se era menina, tratava como mocinha, “sinhora” era pra mulher.
            - Vê se é hora! – queixava mamãe, que se impacienta fácil quando interrompem o almoço não consumado.
            - Deixa, mãe. Ela é doida, tadinha – dizinha minha irmã, pequena, mas eu logo via o brilho malicioso nos olhos. Gostava mesmo era de atiçar a senhora, provocar a “doida, pobrezinha”.
            A gente abria a porta e a dona Aparecida entrava, cheia de intimidade. Claro, quando a porta se achava sem trinco, ela entrava sem cerimônia. Gostava de sentar no sofá, que não lhe dava pé, porque já era senhora muito curva e pequena. Não gostava que homem se sentasse ao seu lado, alegando ser mulher “honesta e dereita”. As vezes eu fazia, só de amolação, e ela logo me botava pra fora do assento, como se fosse mandante na casa, como se o sofá fosse dela. Desaforo!
            A melhor parte era quando perguntava pelo nome. Não podia ser só o primeiro nome, tinha que ser ele todo, completo, pra cantar bem cantado.
            - Qual o seu nome, mocinho? – ela perguntava, fazendo como se fosse interceder em oração. Mas de sacro não tinha nada na música.
            “Linda Cigana” era o seu enredo musical. Batendo palmas e cantando sem afinação alguma, que de voz já quase não tinha mesmo, cantava. Ela se dizia cigano, e nos colocava no lugar da linda cigana. Isso mesmo. Dona Aparecida tirava a Linda Cigana do páreo, e nos fazia ciganos, carregava-nos em suas viagens e acampávamos à beira da cascata, nos levando em sua garupa, gritando upa-upa, parando só pra descansar.
            - Querido, bondoso... – falava o meu nome, ou o de quem se lembrasse na hora – Vamos viver viajando!
            Era louca nada! Pedia até refrigerante! Dona Aparecida, acho que de cigana ela tinha um pouco. Era só abrir a porta, que já entrava. Quando cantava para todos os membros da família, se despedia com a Paz em Deus, e caminhava para a casa vizinha, onde a Linda Cigana daria lugar a outros nomes.
            Às vezes me pergunto por onde anda Dona Aparecida, que já não vejo desde a minha partida da cidade de trinta mil habitantes. Mentira, não me pergunto dela não. Digo isso só para provocar nostalgia, mas a verdade é que só agora me lembrei da pobre Aparecida (se é que pobre não somos nós de não ter a sem-vergonhice e prazer em cantar pra todo mundo e ainda ter o luxo de pedir refrigerante). Acho que ela parou de cantar, coisa que a cigana não contava quando leu nas cartas.
            Quem sabe Dona Aparecida não foi viajar, como dizia sua canção? Deve estar naquela barraca, à beira da cascata, cantando pra um monte de nomes, enquanto a Linda Cigana espera a sua vez.




1 inspirações:

  1. Adorei a sua prosa, Pedro! Você tem muito estilo. Dá para sentir os aromas, as cores e o calor desta cidadezinha. Sem dizer que já me sinto íntimo, assim como você, desta adorável (e voluntariosa) Da. Aparecida!

    Continue escrevendo, você tem um genuíno talento!

    Abraços,

    Nanuka Andrade

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Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos