Capítulo 6 - Borboletas e Lobos

Charlie estava em seu quarto. Esvaziou sua mochila, colocando, no lugar dos livros, uma lanterna, uma chave de boca e uma garrafa de água. Estava se sentindo um pouco idiota, mas sua necessidade por respostas falava mais alto. Vestiu um moletom preto de capuz, calças surradas e um tênis de corrida.
            Abriu a porta vagarosamente, mantendo atenção e silêncio como sua prioridade. Encontrou Andrew no patamar superior da escada. O irmão mais novo estava ansioso, já de pijama, olhando para a luz do andar inferior.
            - Tudo certo? – sibilou Charlie.
            - Não – respondeu Andrew a mesmo tom.
            - Ótimo, vai lá.
            Charlie viu o irmão sumir de vista. Depois disso, apenas vozes. Para o seu azar, o pai estava na escrivaninha da sala de estar, que ficava praticamente de frente à cozinha. Ele precisaria ser rápido e criativo.
            O rapaz apurou os ouvidos, tentando escutar a conversa lá embaixo, mas nenhuma palavra era proferida. Poucos segundos depois Andrew reapareceu no pé da escada, sorrindo para o irmão.
            - O papai está dormindo – murmurou ele – é ou não é uma sorte grande?
            Charlie não respondeu. Desceu, a largos passos, a escada e alcançou o primeiro piso.
            - Onde? – perguntou ele. Olhou para a sala de estar.
            Michael dormia tranquilamente, o rosto sobre os braços, enquanto o computador emitia sua luz trêmula no meio da noite densa.
            - Volte a dormir. Se eles descobrirem, você me dá cobertura.
            Charlie virou-se para o irmão. Ele já tinha subido as escadas. “Ótimo”, pensou Charlie, “Se ao menos ele fosse obediente assim com mais frequência”.
            Finalmente ele tinha alcançado o meio da rua. Estava com a sua bicicleta em mãos, começou a pedalar silenciosamente. Qualquer ruído poderia despertar o vizinho mais bisbilhoteiro.
            Durante dois ou três minutos Charlie permaneceu sua corrida solitária, lançando olhares ao céu vez ou outra, admirando a noite de lua crescente. Sua mente começou a trabalhar, mais uma vez. Tinha uma outra história fervilhando em sua cabeça. Assim que chegasse em casa, trataria de escrever.
            Estava preso à sua nova ideia, quando a campainha de uma bicicleta soou logo atrás dele. Aturdido, Charlie freou e virou-se, procurando a fonte do som que quebrara o silêncio monótono do bairro.
            Para seu extremo pesar, era Andrew, ao seu encalço com sua velha bicicleta.
            - O que está fazendo aqui, cara? – perguntou Charlie num murmúrio irritadiço.
            - Qual é! Você acha mesmo que eu deixaria meu irmão sair sozinho, a essa hora da noite? É uma pedalada de, pelo menos, meia hora.
            - Está preocupado com o quê?
            - Eu... Me senti culpado. – confessou Andrew – quero ter certeza de que nada de mal vai te acontecer. Ou eu vou deixar de ser o filho preferido, e ser simplesmente o único filho.
            - Valeu a piada, mas agora, volte pra casa.
            - Não posso – avisou ele de antemão – quando eu estava sozinho o papai acordou, e voltou a trabalhar no editorial.
            - Maravilha! Ok, você vem comigo, mas, aconteça o que acontecer, fique sempre atrás de mim, não faça nada imprevisível e, por favor, não saia de perto de mim.
            - Ok, irmão – falou Andrew, em tom de ultimato – o negócio é o seguinte, as coisas podem funcionar como você quer. Mas, se quer que eu colabore, é melhor começar a falar. Do que você está fugindo?
            - Não estou fugindo de nada. Estou correndo atrás.
            - E o que seria?
            Charlie pesou a situação. Se o irmão estava prestes a se meter em algo de potencial perigo, era importante que ambos soubessem da situação. Ainda que Andrew pudesse interpretar a confissão como sendo uma recaída do irmão mais velho, Charlie não tinha outra opção se não contar o que havia acontecido. E, finalizando seu pensamento, não conseguia pensar em ninguém mais confiável do que Andrew.
            - Ok, chapa – ele disse, enfim – no caminho eu te conto. Mas tem que prometer que, não importa o quê, vai acreditar em mim.

            - Ok. Um armário encantado – Andrew falou, estacionando a bicicleta atrás de um arbusto na entrada da escola.
            - Não falei nada sobre magia – retorquiu Charlie em sua defesa – não gostei da forma como você disse isso.
            - Olha, cara... Eu sei que você está tentando se ajustar a todo esse... Problema, e tudo mais. Talvez devêssemos...
            - Eu sabia que não devia ter te contado.
            Charlie colocou a bicicleta debaixo da árvore, prendendo-a com a corrente. Fitou a construção à sua frente, pensando o que, raios, poderia estar acontecendo e de onde tinha tirado a ideia imbecil de contar ao irmão sua verdade absurda.
            - Não, Chars, eu não estou dizendo que você está mentindo, eu só...
            - Eu não sou louco, Andrew. Como você explicaria a carta que recebi?
            Andrew pensou em falar, mas abandonou a ideia. Acreditar no irmão pareceu um pouco menos difícil com aquele argumento, mas ratos explodindo em suco de uva e bolas de fogo saltando de armários não era o tipo de história que se acredita com tanta convicção.
            - Fique aqui fora. Eu vou entrar, e descobrir o que puder. – pediu Charlie.
            Deu o primeiro passo em direção ao portão, até perceber que Andrew estava bem ao seu lado, designado.
            - Eu não disse que não acredito. – foi a última palavra de Andrew.
            O irmão mais velho sorriu em agradecimento. Estava tudo acertado.
            Sem delongas, Charlie debruçou-se sobre as barras de ferro do portão. Subiu devagar e, com cuidado, pousou do outro lado, nos domínios da escola, evitando o menor ruído.
            - Hey, Charlie. Você sabe que escolas têm alarmes, certo?
            Charlie não pôde evitar de sorrir, um riso convencido e, até mesmo, sombrio.
            - Sabe a vantagem em ser nerd? Você freqüenta todos os lugares onde há menos movimento. Numa dessas, você descobre coisas... Interessantes.
            - Cara, eu começo a achar que não conheço meu próprio irmão.
            Andrew saltou a grade da mesma maneira. Caminharam pela entrada do pátio, sempre próximos, evitando se expor em qualquer local iluminado. Charlie conduziu o irmão todo o tempo. Caminharam sempre ao lado do muro, atentos e silenciosos.
            - Os alarmes estão nas portas e janelas. Há sensores de movimentos nos corredores, mas, sei de uma coisa...
            - Que seria...?
            - O zelador nunca liga os sensores até ir embora.
            - Peraí! Ele ainda está aqui!
            - Shh! Não seja idiota! – chiou Charlie com urgência – Sim, ele está. Ele costuma ficar aqui até amanhecer, quando troca de turno. Enfim, os sensores raramente ficam ligados. O zelador gosta de perambular pelos corredores e ouvir um pouco de música.
            - Caramba, como você sabe sobre essas coisas?
            - Fiquei preso dentro da biblioteca da escola, uma vez. Eu flagrei o cara dançando “Put your hands in the air”. É claro que ele não me viu. Encontrei um jeito de sair sem que pudessem me ver.
            - E, da mesma forma como você saiu, nós vamos entrar hoje. – arriscou o irmão.
            - Exatamente.
            Andrew sorriu. Não estava mais com medo, ou receio. Havia um brilho de empolgação em seus olhos verdes que superavam até mesmo a escuridão da noite.

            Passaram pelo jardim lateral, a quadra e, enfim, o almoxarifado. Charlie conduziu o irmão até a entrada do local.
            - É aqui – avisou o mais velho. Só precisamos entrar.
            - Ok, mas como vamos...
            Andrew abandonou sua pergunta. Apenas assistiu ao irmão abrindo a mochila e retirando uma chave de boca de quase cinqüenta centímetros. Parecia bem pesada. Antes que pudesse dizer alguma coisa ou repreender o que o irmão estava prestes a fazer, Charlie já havia acertado a fechadura.
            Um baque soou em meio ao silêncio.
            - Vão nos descobrir... – murmurou Andrew – isso não é nada inteligente.
            - Não pude pensar em nada melhor.
            Mais algumas batidas e a maçaneta foi arrancada, deixando uma fenda oval, grande o suficiente para passar uma mão menor.
            - Andrew, agora remova o tranco.
            - O que você faria se eu não tivesse aqui?
            - Teria batido com mais força.
            Andrew sacudiu a cabeça, rindo. Já há algum tempo perderam a noção do perigo a que estavam submetidos cometendo tantas infrações em uma única noite.
            A porta cedeu com um simples empurrão após a retirada do trinco. Eles entraram, sorrateiros, sempre caminhando na ponta dos pés. Charlie manteve a direção, demonstrando sempre segurança.
            Chegaram a uma escada que descia para algum lugar no subsolo.
            - O que é isso?
            - É onde jogam os corpos dos alunos depois da detenção.
            - O... que... Ah, não seja idiota!
            - Rá! – Charlie soltou uma gargalhada – precisava ver a sua cara! Mas, sério, eu não tenho ideia do que é isso. Mas venha, veja isso.
            A sala era um cubículo de cimento, muito quente e repleto de canos. Parecia ser uma rede do ducto de gás antigo. Várias cadeiras quebradas e sacos cheios de bolas furadas estavam espalhados pelo chão, decorando o já decrépito ambiente, além do mau cheiro. Os dois caminharam até uma porta de alumínio bloqueada por uma pilha de cadeiras velhas. Removeram uma a uma, até que fosse possível passar.
            A porta dava para um pequeno corredor, também decorado com encanamentos antigos e bolor fedido.
            - Aonde isso vai dar? – perguntou Andrew, pegando a lanterna na mochila do irmão e iluminando o caminho.
            - Na sala do zelador. É o único lugar onde não há alarme. Afinal, lá só tem vassouras.
            - E um dançarino.
            Continuaram caminhando até alcançarem um pequeno lance de escadas de metal. Caminharam vagarosamente, evitando o ecoar do som metálico. Finalmente chegaram de frente à porta. Charlie girou a maçaneta e a porta cedeu.
            - Me lembre de não guardar o dinheiro do meu lanche no armário, nunca mais.
            - Ok, Andrew. Agora, nada de piadinhas. O zelador pode estar em qualquer lugar.
            A sala do zelador estava mergulhada em um silêncio quase mortiço. As sombras pareciam tremular mesmo diante da falta de luz. No instante em que puseram os pés dentro daquela sala, foi como se a atmosfera a volta deles se tornasse mais pesada. A respiração estava ofegante de repente e, para espanto dos dois, estava frio, ao ponto de resfriar o hálito dos dois intrusos, convertendo o vapor em uma fumaça branca.
            - Sentiu isso? – perguntou Andrew.
            - Isso o quê?
            Andrew olhou a sua volta, temeroso.
            - Essa sensação estranha. É pesado...
            - Não podemos parar, falta pouco.
            Caminharam para fora da sala. A porta se abriu com um rangido e, sem demora, deram de cara com o corredor escuro. A sombra havia engolido cada centímetro do lugar.
            O corredor estava vazio, exceto pelas sombras que, no momento, eram tão humanas quanto eles. Uma rajada de vento advinha do extremo do corredor, dando o aspecto de uma garganta esbaforindo um hálito gelado e fedido.
            - Nunca vi essa parte da escola – comentou Andrew tentando parecer casual. Sua voz, porém, entregou sua apreensão.
            - Sabe de uma coisa? – Charlie fitou o irmão de forma sombria – eu também não.
            Andrew sentiu sua pele empalidecer, tentou dizer alguma coisa, mas sua voz se perdeu. Charlie, assistindo à expressão lívida do irmão, não conseguiu segurar o riso, precisou levar a mão à boca para abafá-lo.
            - Cara, você está total com medo – Charlie conseguiu engolir o riso – vamos, o meu armário está no primeiro corredor à direita.
            Os dois atravessaram o corredor em silêncio. Vez ou outra lançavam um olhar cauteloso para trás. Charlie voltou a sentir aquela estranha sensação de estar sendo observado. Andrew aproximou-se mais do irmão, segurando-o pela manga do moletom.
            - Coloque o capuz – disse ele – ou podem nos reconhecer.
            - Bem pensado. Os dois se cobriram com o capuz e mantiveram o passo. Quando, finalmente, viraram à direita, pararam, estáticos, diante do cenário mórbido.
            Os armários estavam arrebentados, vários livros estavam aos frangalhos, decorando o chão sujo de cinzas de papeis queimados. Apenas o armário 207 parecia inteiro, exceto pela porta, amassada e chamuscada, como se exposta ao fogo. Os dois irmãos trocaram olhares apreensivos.
            - Eles precisam dispensar esse zelador – comentou Andrew, ainda que o medo estivesse presente em seus olhos vidrados.
            A rajada de ar, o “hálito do corredor”, atiçava os papeis e as cinzas que cobriam o chão, fazendo-os levantar vôo e pairar como folhas de árvore outonal. O lugar estava abandonado.
            - O zelador... – Charlie virou-se para o irmão – onde ele está?
            - Dançando? – arriscou o irmão.
            Charlie estava prestes e repreender o irmão quando, subitamente, um grito de pavor e desespero soou como uma sirene, ecoando pelos corredores. Parecia extremamente similar ao grito de um homem.
            - Céus! Que merda é essa? – Andrew chiou, atônito. Olhou para trás, em busca da origem do corredor.
            Charlie começou a puxá-lo em direção ao armário.
            - Foi o zelador – respondeu Charlie, inexpressivo.
            - Isso é uma piada, certo?
            O mais velho o encarou:
            - Eu gostaria que fosse.
            Pararam de frente ao armário. Os livros estavam intactos, organizados da forma como havia deixado naquela mesma manhã.
            - Cara, temos que chamar a polícia! - Andrew sibilou – podem ser bandidos.
            - Alguma coisa me diz que não são bandidos.
            A escuridão parecia ter devorado outra fração do corredor. Uma sombra anormal, quase viva, encobria as paredes e as portas, removendo-as do campo de visão dos dois garotos. Ou, talvez, fossem apenas suas mentes apavoradas pregando peças demais.
            - Eu só preciso de um minuto – pediu Charlie.
            Ele começou a derrubar suas coisas no chão, esvaziando o armário. Encostou a ponta dos dedos no fundo de metal e começou a pressioná-la, como se procurasse algo, ainda que ele não soubesse o que poderia ser.
            - Eles fizeram alguma coisa com o meu armário... – comentou Charlie, absorto em sua busca – espera, tem alguma coisa... Esquece, é só suco de uva.
            Então ele se calou. Pela primeira vez ele havia se dado conta. O que foram todos aqueles acontecimentos... Havia uma série de fenômenos que, de repente, pareciam fazer sentido. Sua história.
            O caderno estava no chão, ao lado das folhas arrancadas que havia amassado no dia anterior. Charlie recolheu e, ansioso, começou a ler trechos selecionados, recolocando as páginas em seus respectivos lugares. “Ratos púrpuras”, “Dragão”, “Olhos cintilantes”, “Bolas de fogo... Construções em chamas”. Charlie leu o último trecho em branco, aquele que deixara por fazer.
            “O primeiro grito ecoou por toda a...”
            - Escola... – murmurou. Seu tom de voz rasgou o silêncio, como um agouro.
            - Pela sua cara, descobriu o que queria. Vamos embora?
            Charlie só conseguia pensar naquele trecho. “O primeiro grito...”.
            - O zelador! – o irmão mais velho olhou para o corredor, origem do grito – temos que encontrá-lo! Ele está em perigo!
            - E nós não? – retorquiu Andrew.
            Charlie não deu ouvidos ao irmão. Começou a caminhar a largos passos em direção ao corredor. Andrew estava logo atrás. Eles sabiam que não se tratava mais de uma simples invasão.

            Charlie focou a lanterna em direção à escuridão. Talvez fosse apenas uma ilusão de ótica motivada pelo medo. Mas as sombras pareciam se esquivar da luz, rastejando para os cantos penumbrosos.
            Seguiram adiante, Andrew sempre vigiando a retaguarda. Qualquer movimento, e correriam como loucos, era o que haviam combinado. As sombras continuavam dar a impressão de rastejar para longe da luz.
            Estavam próximos à sala 5-B quando ouviram um sussurro, misturado a uma respiração fraca e forçada. Mais olhares trocados, estavam pesando as escolhas. Charlie aproximou-se da porta e pregou a orelha na superfície de vidro fosco, tentando ouvir alguma coisa...
            BUM!
            Alguma coisa bateu na porta, obrigando Charlie a se afastar. O vidro trincou de cima a baixo, formando uma linha curva que se propagou vagarosamente. Outra batida e eles puderam ver. Do outro lado, uma mão estava apoiada sobre o vidro. Uma mão grande, talvez de um homem.
            - O zelador! – Charlie percebeu – deve ser ele.
            - Não, Charlie...
            Tarde demais. Charlie abriu a porta, pronto a dar apoio ao homem. Mas o que viram não era, nem de longe, um homem. Pelo menos não o que costumava ser.
            Charlie ficou lívido, encarando a figura no chão, com as mãos magras e ossudas estendidas em sua direção. O rosto do homem havia apenas um rastro distante de humanidade. Seus olhos estavam protuberantes e a língua pendia para o lado, fora da boca. Os cabelos estavam ralos e escassos. Parecia estar em decomposição.
            - Mas que mer... – Andrew deixou sua voz falhar.
Acabara de ser interrompido por um ruído na outra sala, a duas portas de distância. Era o laboratório do colégio.
            Charlie, ainda de frente ao zelador, ou pelo menos ao que restou dele, ainda estava perplexo, dando pouca atenção ao som.
            - Hei, você... Está bem? – murmurou Charlie, abaixando-se lentamente.
            O homem gemia baixinho, como se chorasse por dentro. Seus olhos de aspecto triste estavam fixos ao olhar de Charlie. O garoto começou a se aproximar do homem. Esticou a mão um pouco, tentando alcançar a do zelador.
            _ GRRYAH!
            O grito do zelador se converteu em um urro agudo e medonho. Sua expressão cadavérica estava, agora, raivosa, e salivava enlouquecidamente.
            O Zelador segurou Charlie pelo pulso, com uma força e fúria incompatíveis ao seu aspecto decrépito. Charlie tentou se afastar, mas a coisa o segurou com as duas mãos. O rapaz gritava em desespero, enquanto tentava repelir a criatura com os pés.
            - Solta o meu irmão, meleca! – Andrew saltou sobre o zelador, desferindo-lhe um chute certeiro no rosto.
            O pescoço girou duas vezes, e a cabeça pendeu, inerte. A coisa soltou Charlie. Estava quieta, silenciosa, apenas sua expressão furiosa permanecia. Nada mais.
            - O que... O que tá acontecendo...? – Charlie murmurou para si mesmo, olhando de um lado para o outro.
            Andrew ajudou o irmão a se levantar. Os dois recuperaram o ar, engolfando uma boa “golada” de ar, enquanto tentavam manter os nervos controlados. Finalmente, Charlie virou-se para o corredor.
            - Tem alguma coisa no laboratório... – sussurrou Andrew – ouvi alguma coisa se mexendo lá dentro.
            - Pode ser a coisa que está fazendo isso...
            - Então vamos para o outro lado – concluiu o irmão.
            - Não.
            A resposta de Charlie foi definitiva. Ele não sabia explicar, mas a sensação de pertencer àquele lugar era envolvente. Era como se fosse, em parte, responsável pelos acontecimentos. O que acontecera ao zelador...
            - É a minha história, Andrew... – falou, enfim, o irmão mais velho – minha história...
            - Do que você está falando, Chars? Que história?
            - O “primeiro grito”, os ratos correndo, os... Olhos cintilantes de esmeralda... A bola de fogo...
            - Estamos prestes a morrer e você fica falando sandices! Você é mesmo louco!
            Charlie começou a correr em direção ao laboratório. Queria tirar a prova. Seria mesmo verdade? Era improvável que sua história estivesse, realmente, acontecendo, mas tudo o levava a crer.
            Andrew veio atrás dele, tentando impedi-lo, mas Charlie estava decidido.
            O irmão mais velho levou a mão à maçaneta e, levou o dedo à ponta do nariz, pedindo silêncio ao irmão.
            - Andy... Se eu disser “corre”, você corre. Ok?
            Ele só teve forças para afirmar com a cabeça.
            Virou a maçaneta. Abriu a porta. A claridade do poste entrava pelas janelas, iluminando parcialmente o laboratório. O cômodo estava revirado. Jarros quebrados, migalhas de bichos dissecados. Uma cobra pendia no teto, girando no ventilador. A mesa estava virada, coberta pelo que parecia ser um manto viscoso.
            Pensaram em entrar, mas foram impedidos. Um rosnado, de detrás da mesa, deu o aviso. O manto se mexeu lentamente, deslizando sobre a mesa e abrindo como um enorme guarda-chuva.
            - Lanterna – pediu Charlie.
            O rapaz iluminou o que parecia ser o manto viscoso. Estava enganado. Parecia ser uma fibra, mas era vermelho intenso, como o tom do próprio rubi. A comparação causou-lhe calafrios. Ele temia o que poderia ser.
            A luz pareceu chamar a atenção da criatura atrás da mesa. Ela esticou o pescoço, na direção dos jovens. Por um momento, todo o ar da terra parecia ter acabo, e respirar era impossível.
            A enorme cabeça triangular repleta de escamas escarlate olhava ameaçadoramente, seus dois olhos compridos e verdes brilhando. A fenda dos olhos estreitou-se como se focasse os dois jovens. O guarda-chuva gigante se abriu, revelando sua identidade: uma asa.
            - DRAGÃO! – berrou Andrew.
            Foi a gota d’água. O animal investiu contra a mesa arrebentando-a em centenas de estilhaços de madeira, enquanto seu rosnar furioso arruinava todo o empenho dos jovens em manter o silêncio.
            - CORRE! – Charlie virou-se, deixando a lanterna cair, puxando o irmão pelo braço com violência.
            Os dois iniciaram a corrida para salvar suas vidas. O estrondo logo atrás deles indicou a saída do animal. O segundo rosnado foi ainda mais decidido, fazendo as janelas estremecerem. Charlie virou-se e vislumbrou por uma fração de segundo o animal erguendo o rabo e desdobrando as asas. Como na sua história.
            - Ele está armando o bote! – avisou Charlie.
            O dragão começou a correr. Com fúria, as patas batiam no piso, provocando rachaduras, derrubando armários com a cauda e projetando a cabeça contra os obstáculos, bebedouros e lixeiras.
            Os dois irmãos correram pelo largo corredor quando sentiram uma rajada quente logo atrás deles. Apenas tiveram tempo de se abaixarem, abrindo caminho para a enorme bola de fogo expelida pelo dragão em fúria, que rasgou o ar em um vôo rasante, queimando os papeis que eram carregados pelo “hálito” do corredor. Sua luz dourada intensa expulsou a escuridão densa que, como se rastejasse, fugiu. Charlie conseguiu ver com nitidez, as sombras se escondendo dentro dos armários e atrás das portas, evitando a luminosidade arrebatadora. Era certo, elas eram vivas e, por mais absurdo que pudesse ser, havia algo de muito humano nelas.
            O caminho estava visível agora e, com sorte, conseguiriam fugir. Charlie avistou a curva à direita a poucos metros de distância, o próximo corredor que os levaria ao refeitório. Sentindo a aproximação do dragão, não restava outra alternativa.
            - Andrew! Vamos nos separar!
            - Como é?
            - Vire à direita! É o refeitório!
            - Eu não vou te deixar!
            - Ele ta chegando mais perto! Agora, Andrew! AGORA!
            Andrew hesitou. Por um breve momento, apenas. Charlie percebeu que o irmão iria titubear. Andrew compreendeu que, fazendo isso, estaria fora do campo de visão do animal, que iria perseguir apenas seu irmão mais velho. Charlie tomou uma rápida decisão. Correu na direção de Andrew e, com um empurrão, jogou-o para a direita, caindo no outro corredor. Charlie manteve-se em linha reta, olhou para trás tempo o suficiente para certificar-se de que seu plano funcionara. Como esperado, o dragão polonês ainda estava ao seu encalço.
            Andrew reapareceu no corredor, aos berros, esbravejando contra o irmão pelo ato heróico e estúpido.
            “Volte pra casa, irmãozinho”, pensou Charlie consigo mesmo, aliviado por saber que, por hora, o irmão estava em segurança.
            Ainda correndo, Charlie estava quase no fim do corredor, onde se podia ver, do outro lado da vidraça, o pátio de entrada. Charlie encarou a enorme porta de vidro e aço inoxidável à sua frente. Era uma porta pesada, e havia uma grande chance de não conseguir atravessá-la. Se falhasse, seria o seu fim, ficaria detido com a cara amarrotada na superfície de vidro, enquanto a enorme fera o queimaria vivo.
            Charlie fechou os punhos, erguendo-os a frente do rosto, enquanto suas pernas corriam em direção ao fim da linha. Cerrou os olhos e deixou seu corpo ser levado pelo impulso. Saltou. Em direção à porta. Apenas torcendo para que a vidraça não fosse tão sólida quanto parecia, e que ela se estilhaçasse como os vidros bem comportados fazem.
            Assim que seus pés de desprenderam do chão, precipitando-se contra a porta, algo aconteceu. Ele não havia se chocado com vidro. Ao invés disso, sentiu seu corpo atravessar sem problema.
            Abriu os olhos, surpreso. Ainda no ar, como se tudo estivesse em câmera lenta, conseguiu visualizar borrões escarlate pairando a sua volta, enquanto o som metálico chacoalhava a sua volta.
            Borboletas. Centenas, talvez milhares delas. Não havia mais nenhuma porta. Como antes acontecera com seu suco de uva.
            Seu corpo pousou sobre a grama com estrondo, Charlie caiu de bruços, sentindo seus braços arderem com o impacto.
            Ao olhar pra trás, a nuvem de borboletas vermelhas havia se projetado contra o dragão, turvando a visão do animal e desviando a atenção. O garoto se arrastou ferozmente pela grama, o mais longe que pôde, enquanto encara, atônito, o duelo entre o turbilhão de borboletas e o dragão.
            -Berbellia prensus! – uma voz feminina ecoou no meio da noite, vindo de algum lugar.
            A ordem de origem misteriosa foi ouvida. As borboletas, ante a palavra proferida, se reagruparam à frente do dragão e, com as asas abertas, começaram a formar um ciclone de asas barulhentas. Pareciam ser feitas de metal.
            Elas formaram uma fila única, envolvendo cauda e pescoço da criatura feroz. Como por mágica, as asas pequenas e frágeis de cada uma delas se uniu, formando uma corrente. Seus minúsculos corpinhos estremeceram e, inesperadamente, o animal se sentiu imóvel. Por mais que se contorcesse e tentasse escapar, o dragão parecia estar acorrentado.
            Foi quando Charlie percebeu. Não eram borboletas comuns. Suas asas chacoalhavam emitindo um brilho metálico.
            - Contricto! – a voz ressoou novamente.
            As borboletas se contraíram, sufocando o animal contra o solo. O dragão, apesar da tentativa de imobilizá-lo, ainda era incrivelmente forte. Suas enormes patas batiam contra o chão, enquanto a extremidade da corrente de borboletas tentava alcançar a árvore mais próxima. Estavam com algum sucesso, o animal, mesmo inquieto, estava imobilizado.
            Charlie estava, num minuto, encarando o animal lutando contra pequenos insetos supostamente inofensivos e, no minuto seguinte, um vulto havia se projetado à sua frente. Era impossível ver o rosto, pois todo o corpo estava coberto por uma capa preta. Ainda assim era possível diferenciar a silhueta feminina. Era a dona da voz que ordenara as borboletas a salvá-lo.
            Ela ergueu a mão aberta em direção ao animal e, em seguida, fez um gesto brusco, fechando os dedos no punho. Imediatamente, as borboletas comprimiram ainda mais, sufocando o dragão.
            - Não vou agüentar muito tempo! – gritou a voz – preciso de ajuda!
            - Eu? Ajudar? – Charlie, por um momento, acreditou ser ele a pessoa com quem a garota misteriosa falava.
            Mas estava errado. Subitamente, logo atrás dele, cinco enormes lobos saltaram com elegância. Charlie pôde visualizar muito bem cada um deles. Pelagem negra de um brilho azul quase místico, olhos muito amarelos e dentes exibidos em um sorriso carnívoro.
            Os cinco lobos correram em direção ao dragão.
            - Imobile! – gritou uma voz, grossa e masculina, ao fundo.
            Os lobos cravaram os dentes no animal. Cada um em um membro (pernas e cauda), enterrando as patas no chão e garantindo a imobilização do dragão.
            - Petracus! – a voz repetiu.
            E algo mais aconteceu. As feras lupinas se converteram em cinco genuínas estátuas pesadas de pedra, em forma de lobo. O que antes eram pelos, agora era uma densa pele de concreto maciço e de aparência indestrutível.
            - Bom trabalho, garotos!
            Um segundo vulto surgiu, maior, também coberto por uma capa vermelha. Era o dono dos lobos, pensou o garoto, ainda perplexo, encarando as feras em sua batalha surreal.
            Charlie levantou-se, certificando-se de estar bem coberto pelo capuz. Estava pronto para perguntar quem eram eles, quando aconteceu o que menos esperava.
            Um grito insuportável e muito familiar ecoou no meio da noite, abafando até mesmo os urros furiosos do dragão.
            - Andrew! – exclamou Charlie para si mesmo.
            Já não se importava mais com lobos, borboletas ou heróis misteriosos. Seu irmão estava em perigo. Naquela mesma noite, um grito muito familiar tinha significado o fim para o zelador da escola.
            Aproveitando a chance do dragão contido e seus dois defensores ocupados, correu em busca do irmão. Foi em direção aos fundos do colégio, sem dar a devida atenção às advertências da garota, que notara o movimento do rapaz. O objetivo de Charlie, agora, era garantir que Andrew estivesse seguro.
            Saltou sobre o baixo muro coberto de heras, onde costumavam depositar o lixo. Completamente desatento ao lugar onde pisava, acabou escorregando em uma embalagem de suco artificial, mas logo se levantou e pôs-se novamente a correr. Não havia percebido as incontestáveis lágrimas que brotavam involuntariamente de seus olhos. “esteja bem, Andrew... Esteja vivo, seu idiota!”.
            Ele rompeu a porta lateral com dois pontapés furioso. Não deu a menor importância ao alarme que soava raivosamente, o garoto apenas saiu em disparada pelo corredor. A toda a volta, os sinais de devastação eram notáveis, e mesmo as sombras se alvoroçavam. Avistou o corredor onde empurrara seu irmão.
            Cruzou a esquerda, seus olhos, marejados, buscavam o menor indício do irmão. A porta que dava ao refeitório estava aberta, só poderia ser ali. Entrou, atordoado.
            A poucos metros de distância Charlie avistou um vulto trêmulo, atrás de uma mesa aos fundos do refeitório. Num ato impensado, onde apenas o desespero em encontrar o irmão são vinha à sua mente, Charlie correu em direção ao vulto, só poderia ser Andrew.
            Ao se aproximar, pôde constatar. Era, de fato, seu irmão Andrew.
            O irmão mais novo girava a lanterna em todas as direções iluminando teto e paredes, enquanto as sombras vivas se esquivavam, impotentes ante a luz. Naquele momento, a lanterna era nada, senão uma arma.
            Charlie abaixou-se para ajudar o irmão, quando fitou, pasmo, o braço direito de Andrew. Seu rosto empalideceu diante da cena, enquanto o garoto mais novo suava, pressionando o pulso finíssimo, tentando afastar uma dor que vinha não sabia de onde.
            O braço direito fora reduzido a uma pele cinzenta e viscosa cobrindo um osso fino, as mãos eram grandes e os dedos, ainda mais magros, tinham assumido o dobro do comprimento original. O aspecto era cadavérico, como acontecera ao zelador. Andrew estava debruçado sobre os próprios joelhos, tentando afogar um choro de pura agonia.
            - As sombras, Charlie... Foram as sombras... Se eu não tivesse a lanterna...
            Charlie abraçou o irmão, apertando-o contra seu peito. Queria poder partilhar da dor e da aflição, tirar do irmão mais novo um pouco de toda aquela angústia provocada pela situação que, por sinal, fora criada pelo próprio Charlie.
            O rapaz estava prestes a se derramar em lágrimas e desculpas, quando um barulho no corredor chamou sua atenção. Pareciam passos, indicando a aproximação de alguém.
            Charlie segurou Andrew pelo braço saudável e o puxou até o balcão, escondendo atrás das grandes mesas onde eram servidas as refeições. Ficaram em completo silêncio. Andrew precisou morder a manga do próprio moletom para abafar os soluços. Os passos invadiram o refeitório.
            - Algum sinal dele? – perguntou a voz masculina.
            Houve um silêncio de dois minutos.
            - Não, Ernie. Nada – a voz era estranhamente familiar – Mal consegui ver seu rosto.
            - Ótimo. Vamos embora, então. Venha, Helena, meu pai saberá o que fazer com o dragão.
            Charlie ficou paralisado, enquanto os passos ecoavam para fora do recinto. O pavor, a euforia, a aflição do irmão, tudo isso se misturava àquela revelação atordoante. Ao passo em que o movimento dos dois heróis se distanciavam como um eco, Charlie confrontava os fatos, loucos demais para serem verdades: aqueles não eram outras pessoas, senão Ernesto e Helena. Os auxiliares de biblioteca.

5 inspirações:

  1. Bem...
    Pedro, você sabe como eu AMO a história de Inspirados, então nem vou falar tudo aquilo que já falei no Nyah! =P
    Mas digo que fico MUITO feliz por ver que essa saga tão maravilhosa ganhou blog *-*
    E eu quero ajudar a divulgar essa história tão linda!
    Aceita parceria? (meu email tá lá no blog de Teorias =P)
    Abraços, e prometo acompanhar Inspirados por aqui *-*

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  2. Claro que eu aceito parceria!
    E, realmente, eu estava com saudade de seus comentários. Normalmente eles quebravam o gelo rsrs

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  3. Adoreii!! Muito intenso! :)
    Parabens pelo blog!

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  4. [A]

    Sério, chapa... Eu só tenho a elogiar o teu blog. CARACAS MANOLO!! *--------------------* Eu adoro o jeito que você narra a história! Simplesmente me identifiquei com as cenas descritíveis, com os aspectos dos cenários, do modo como Charlie fala: "chapa". De TUDO! *----------------------* Pode confessar, você sempre teve mania de escrever.. u.ú

    Aliás, pode dizer a todo mundo que Charlie já tem dona. #lixandounha Ele é meu.

    HUAHUAUHAUHUHAUHAUHUHAUHAHUAHUAHUA

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  5. MaRiNa
    brigadão xD é sempre um prazer ter gente nova por aqui!

    Juliana
    ok, ok, o Charlie é seu, contanto que ele possa primeiro resolver os problemas em que ele se meteu. Depois vocês discutem a relação hahahaha

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Fique à vontade, dê sua opinião, diga o que pensa, critique e elogie. Só não perca a chance de ser lido ou ouvido quando lhe for dada essa oportunidade! xD
Boa leitura, e vai pela sombra \o/

 
Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos