Quando, enfim, Charlie havia cruzado a esquina da sua rua, os primeiros pensamentos vieram a sua cabeça em um súbito choque de pavor. A princípio tudo parecia uma aventura, um pequeno deslize dos seus ratos e o seu suco de uva. Mas, depois de uma longa caminhada a pé e um pouco de reflexão, começou a se lembrar de algumas coisas como, por exemplo, os ratos não eram seus, e nunca tinha visto nenhum se converter em suco de uva, justamente no dia em que não havia nenhum suco dentro do seu armário quando, na verdade, deveria haver.
Seus pensamentos confrontaram um único e poderoso pensamento: aquilo devia ser loucura. Um surto de insanidade, um distúrbio de hormônio típico da sua idade. Nada disso parecia explicar o ocorrido.
Depois de pensar, cogitou que, talvez, possuísse uma espécie de dupla personalidade travessa, responsável por todo o derramamento de suco. Convencido de que isso não explicava a aparição dos ratos, descartou a hipótese.
Assim que atravessou a cerca branca do seu jardim, Charlie se permitiu esquecer, mesmo que por alguns segundos, do incidente na escola. Não queria transparecer preocupação, sua mãe sentia esse tipo de coisa à distância. Depois de muito tempo, Lauren aprendeu a decifrar as expressões de seu filho peralta.
- Cheguei! – ele gritou assim que passou pela porta da frente.
Jogou a mochila molhada sobre o sofá e o casaco, secou a sola dos sapatos e caminhou rumo às escadas, ignorando o cheiro de pão fresco. Estava quase alcançado o patamar superior, quando uma porta do segundo andar se abriu com estrondo. Um Andrew muito ofendido saiu do quarto, nitidamente nervoso.
- Não é justo, Char! – disse ele, bufando – Primeiro você me deixa de fora durante o recreio...
- Intervalo.
- Que seja... Depois ainda me deixa plantado no ponto de ônibus, e chega a uma hora dessas. Isso não é do seu feitio.
- “Do seu feitio”? – Charlie arqueou uma sobrancelha – você anda lendo um bocado.
- Não seja idiota. Quer saber, se não quer a presença do seu irmão, é só avisar.
Charlie estava prestes a retrucar, quando a porta do último quarto do corredor se abriu. Era Michael Logan. Seus cabelos eram loucos acobreados, de olhos ligeiramente castanhos, quase amarelos, e uma pele nem tão branca, porém nada bronzeada.
- Você tem evitado seu irmão na escola, Charlie? – perguntou Michael.
- Não, pai, não é... – Andrew tentou argumentar, mas foi interrompido quando o pai esticou a mão em sua direção, pedindo por silêncio.
- Você não me respondeu, Charlie – Michael ainda estava olhando para o filho mais velho.
- Sim – disse Charlie, sem delongas – já tenho muitos problemas meus para resolver.
- Não deveria tratar seu irmão assim – disse Michael – ele pode te ensinar algo sobre se relacionar com pessoas. Você fica enfurnado todos os dias no seu quarto, escrevendo e escrevendo, e nunca deixa ninguém sequer tocar nas suas coisas. Às vezes parece gostar do seu irmão, mas, às vezes, você parece não querê-lo por perto.
- Não quero ofuscar o brilho dele, pai. A propósito, achei que era exatamente o que quisessem de mim. Não foi pra isso que serviram as terapias? – Charlie deu de ombros. Entrou em seu quarto, fechou a porta enquanto o pai falava sozinho.
Naquele momento, deixou que toda a frustração desaparecesse, e o ocorrido do dia voltara à tona. Ratos e coisas inexplicáveis. Não gostava de não ter explicações. A primeira coisa que fez foi se sentar de frente ao computador e digitar um amontoado de palavras que pudessem explicar os “fenômenos” em sua escola. No entanto, quanto mais tentava expressar em palavras, mais a situação parecia ridícula, e mais ele acreditava estar ficando louco.
- Você precisa relaxar, chapa – falou ele para si mesmo – tem estudado demais.
De fato. As férias não foram um tour memorável. Tudo o que ele tinha feito, além de escrever fragmentos de histórias, era estudar. Até o seu primeiro ano no colegial ele tinha compulsão por escrever. Sua inspiração vinha de todas as partes e, algumas vezes, de lugar algum, criando tramas e personagens extraordinários. Mas, nos últimos dois anos, foi como se todo esse fogo, essa paixão, estivesse se esvaindo aos poucos. Algumas das suas obras mais recentes tinham cinco páginas, outras ultrapassavam cem, mas nenhuma delas tinha um fim. Ele as chamava pejorativamente de “ideias inacabadas”.
Charlie estava quase pegando no sono, debruçado sobre a mesa-de-cabeceira, quando a porta do seu quarto abriu.
- Charlie – era a voz do Andrew.
Ele hesitou, mas não abriu. Esperou que o irmão desistisse, o que não aconteceu.
- Charlie, o jantar está pronto.
- Não sei se estou com fome. – avisou ele.
- Precisamos discutir sobre o que faremos amanhã. – sentenciou o irmão mais novo, quase suplicante.
- O que tem amanhã?
Houve um pequeno momento de silêncio.
- Você ta falando sério? – Andrew tinha o tom de surpresa em sua voz abafada pela porta – amanhã é seu aniversário. Lembra?
Não. Charlie havia se esquecido completamente.
- Ah, ok. Estou descendo em um minuto.
- Er... Charlie.
O irmão mais velho revirou os olhos, ainda que mais ninguém pudesse ver.
- Diga, Andrew.
- Será que você pode abrir a porta, por favor?
Charlie sabia como o irmão era insistente. Ignorá-lo não era a melhor maneira de se desculpar pelo seu comportamento. Abriu a porta do quarto e deu passagem para o irmão. Charlie sentou-se na escrivaninha, fingindo estar lendo alguma coisa. Andrew acomodou-se na cama, encarando o teto, escolhendo as palavras certas.
- Eu gostaria de poder fazer alguma coisa, saber? – começou ele.
Charlie o encarou por um momento.
- Fazer o quê? – perguntou Charlie.
Andrew pareceu analisar a resposta e, por fim, falou:
- Eu gostaria de fazer alguma coisa para você se sentir melhor. Eu não tenho culpa se você e o papai não se entendem. Mas, às vezes, você age como se eu fosse o culpado.
- Andrew, não! – Charlie levantou-se, sentando ao lado do irmão – olha, chapa... Eu não... A culpa não é sua. Você é legal. Eu? bem... Nunca fui o garoto mais comportado.
- Mamãe me conta o que você fazia quando pequeno – Andrew exibiu um sorriso orgulhoso – ela acha engraçado... Mas o papai não.
- Está tudo bem, Andrew. Sério.
Charlie passou a mão por cima do ombro do irmão, bagunçando os cabelos lisos do caçula. Ele entendia que, embora Andrew fosse uma espécie de filho predileto, não era por mal. Andrew nunca pediu por nenhum tratamento especial. Na verdade, ele acreditava ser esse o motivo de Charlie não gostar tanto dele.
- Jantar? – Andrew sorriu.
- Sim, já estou indo. Vou só me trocar.
Andrew se levantou, mais satisfeito. Estava prestes a sair do quarto, quanto lembrou-se de algumas coisa.
- Ah! Charlie – ele meteu a mão no bolso da jeans e tirou um envelope branco – isso aqui chegou. É pra você.
- Pra mim? – Charlie pegou o papel, encarando o selo timbrado – de quem?
- Não sei. Tudo o que diz é “Sr. Sanguinetti”. É familiar pra você?
O irmão fez que não com a cabeça.
- Mais alguma coisa? – perguntou Charlie.
- Stephan e Ruth ligaram. Disseram que estão com saudades e pretendem fazer uma visita.
Naquele momento Charlie se permitiu sorrir. Stephan e Ruth eram seus melhores amigos desde a época em que se mudara para Nova Jersey. Stephan também era um garoto problemático, faltava a muitas aulas e quebrava coisas. Ruth era a equilibrada, sempre sendo a voz da razão nos momentos de necessidade. Era triste admitir, mas, Charlie sentia falta de se comprometer com as pessoas, formar laços, toda aquela cumplicidade de amigos. Depois de regressar para Manhattan, Helena foi a única amiga que conseguiu preservar. Além do próprio irmão, é claro.
Andrew despediu-se com um aceno rápido de mão e deixou o quarto, batendo a porta de leve ao sair.
Charlie estudou o timbre da carta por um breve minuto. Parecia ser uma pena e, logo atrás, um livro aberto. Ao fundo linhas divergentes pareciam simular o sol poente. O rapaz removeu o timbre e abriu a carta. Era um papel fino, impecável de tão branco. Deslizou os dedos sobre a superfície macia, sentindo a textura incomum. Ao abri-la, percebeu que se tratava de uma carta escrita em máquina de datilografia, das bem antigas. Havia um cheiro estranho, porém agradável, de mofo.
Ele começou a ler, sem delongas. Era uma boa forma de manter a mente ocupada. Entretanto, o que leu não ajudou em nada.
“Prezado Sr. Charlie C. Galahan,
Viemos, através desta, informar-lhe que, com o cumprimento do seu décimo oitavo aniversário, os devidos ajustes no armário 207 da NY High school foram devidamente arranjados. Pedimos encarecidamente que não usufrua do benefício até o cumprimento de seu aniversário de dezoito anos, uma vez que a manutenção ainda não foi completamente realizada, podendo ocorrer eventos indesejados. Ao pedido de Northon Galahan, a instalação do produto será minuciosamente realizada. Lembramos que sua Inspiração deve ser mantida em completo sigilo para que eventuais transtornos não aconteçam. Conto com sua descrição. Absolutamente ninguém deve ter conhecimento sobre o seu presente. Feliz aniversário.
Desde o instante, agradeço a compreensão,
Dr. Sanguinetti, Colecionador de Literadouros”
Não havia nenhuma explicação, apenas um monte de loucas palavras sem sentido. Charlie leu a carta duas, ou talvez vinte vezes. No final, só conseguiu concluir uma coisa:
- Hein?
Já não era suficientemente difícil conviver com o ocorrido daquele dia. A carta acabou por estragar o seu apetite e, depois de tanto reler, se sentia cada vez mais confuso e perdido. Normalmente, qualquer um temeria a correspondência de um estranho e acontecimentos como os que ele passara. Uma pessoa em suas condições normais diria a um responsável, talvez os pais, ou mesmo chamaria a polícia.
Charlie, no entanto, não o faria. O que iria dizer? Que ratos surgiram do nada em sua direção, sem motivo algum e, agora, recebera uma carta que supostamente explicava o ocorrido? Isso seria insensato e, ele o sabia muito bem, seria mais um motivo para que o chamassem de “garoto criativo”, como seu pai costumava chamá-lo quando queria se referir ao filho mais velho como “o mentiroso”. Mas havia algo que o incomodava mais. O nome: Charlie C. Galahan. Como poderiam saber...? Ele nunca tinha contado...
A vida de Charlie era assim escrita por mãos que ele desconhecia. Em sua meninice tinha esses surtos de ideias desenfreadas e, por mais que tentasse impedi-las, elas pululavam em sua mente e, quando acontecia, não podia fazer nada. As mentiras se tornaram constantes e, a cada dia, mais sérias.
A última que Charlie realmente recordava ocorreu cerca de sete anos atrás. Charlie contava com onze, enquanto o irmão tinha apenas oito anos. Estavam montados em suas bicicletas novas, quando o irmão mais velho teve a brilhante ideia de correr pelo parque do bairro ao lado. Havia um playground instalado recentemente pela prefeitura, onde muitos outros garotos da sua idade passaram a frequentar.
Andrew acabou desaparecendo nessa aventura, e Charlie se viu obrigado a voltar para casa e avisar aos pais. Mas, antes de dizer o que ocorrera, acabou colocando a culpa no Comodoro Bennet.
- Foi o Comodoro, mãe! – disse ele, tentando ocultar qualquer outra expressão que não fosse a de desespero.
- Quem é Comodoro, Charlie? – a mãe já temia o que estava acontecendo. A resposta do filho deixou tudo muito claro.
- Comodoro Bennet. O militar lusitano, ele tem um bigode assim, penteado, e um olhar bem miúdo, como se os olhinhos fossem duas uvas passas. Ele tinha uma espada bem afiada e disse que levaria o Andrew! Acho que ele confundiu meu irmão com alguém...
A mãe silenciou o filho. Naquele momento estava perfeitamente claro o que deveria fazer. Primeiramente, anunciou as autoridades sobre o desaparecimento do menino, e correu pelas ruas do bairro vizinho em busca de sua criança. A noite já estava caindo quando ele foi encontrado brincado com outros jovens perto de um córrego.
A segunda medida tomada por Lauren foi buscar ajuda profissional. Depois de quase oito meses de busca, conseguiu encontrar um decente psiquiatra, Dr. Peterson, que aconselhou Charlie a escrever todas as ideias que tivesse, ou mesmo desenhasse, desde que encontrasse, de alguma forma, extravasar seus pensamentos.
Foi o que ele fez. Começou com um diário aos treze anos e, no mesmo ano, começou a sua jornada em livros de fantasia e aventura. Em uma delas estava Grimos, o menino-raposa, e Comodoro Bennet, o militar mafioso de uma família italiana muito temida. Aos poucos foi possível controlar o impulso do filho mais velho por mentiras, que se tornaram cada vez menos freqüentes.
Então, um dia, deixou de contar mentira, de qualquer espécie. Foi a cerca de dois anos atrás, quando suas histórias deixaram de ser histórias e se tornaram as “ideias inacabadas”. Nessa mesma época, ele deixou de ver necessidade em falar. Não via graça nenhuma na realidade.
Naquele instante, dentro do seu quarto diante daquela carta, Charlie temia por si mesmo. Durante muito tempo ele se fez acreditar em todas as suas mentiras. Realmente acreditava ter sido obra de Grimos a brincadeira da lata no forno e, ainda que sentisse culpa, tinha um ódio tremendo pelo Comodoro, que nem ao menos existia. Com as terapias o problema foi resolvido, mas... E se estivesse voltando? E se aquilo fosse uma recaída e tudo o que presenciara era uma farsa, mentiras sobre mentiras e, agora, estava ludibriando seu próprio cérebro? Era a explicação mais óbvia, mas era a que ele menos gostava.
- Eu não sou um maluco... – murmurou ele, fitando o teto com determinação – eu não sou maluco!
Gostando mto da leitura ;)
ResponderExcluirBjs ♥!!!