Capítulo 8 - Por Trás da Porta - Besouros



            Ophelia se lançou contra os dois rapazes. A garota, antes elegante e comportada, assumira todo o seu lado selvagem, exibindo dentes nada condizentes com sua feição gentil. Os dedos estavam arqueados, exibindo longas garras negras.
            Havia um brilho fosco e pálido em seus olhinhos de jovem assassina, ainda que sua beleza fosse a característica mais marcante. Todos os pensamentos sobrevoaram a mente de Charlie, mas a garota-gato era rápida demais, dificilmente seria detida.
            Foi Andrew quem pensou rápido.
            - Sai, Charlie! – o irmão mais novo afastou Charlie com um empurrão – vem, bichana!
            Andrew estendeu o braço disforme em direção ao animal. As unhas de Ophelia se enterraram na jaqueta, assim como seus dentes. Ela caiu de cócoras no chão, ainda firmemente segura no que deveria ser sua presa. Mas tudo o que conseguira perfurar foram os tufos de algodão e tecido.
            - Rá, sua gata burra! – bradou Andrew, vitorioso.
            Armou um chute certeiro. Foi impecável. Acertou a garota bem na testa, lançando-a dois metros para trás. A garota se viu com a luva presa em suas presas, enquanto os longos dedos acinzentados e oleosos de Andrew estavam expostos. Não era uma cena muito agradável.
            Ophelia cuspiu a luva.
            - Mamãe, esse plebeu tem um gosto horrível.
            - Não seja tola, menina. Isso é uma luva!. – avisou a mãe, impaciente – coma logo, morda apenas a pele! Também estou faminta.
            Ophelia voltou sua atenção a Charlie. Era ele o escolhido como o prato do dia. Ela sorriu tenebrosa, exibindo, novamente, dentinhos pontudos. Andrew mal pôde pensar quando a garota-gato investiu outro ataque contra o irmão mais velho.
            - Charlie!
            Andrew correu em sua direção, com o braço asqueroso estendido em direção à felina. Ela precipitou-se no ar, caindo de cócoras, por pouco errando seu alvo. Andrew segurou-a pela longa cabeleira usando sua mão comprida e pesada.
            - Aqui não! – ele gargalhou – segura esse apetite, fedorenta!
            E tudo aconteceu muito rápido. Andrew mal tocara a garota, mas alguma coisa arremessou Ophelia para longe, seguido de uma explosão de luz azul-prateada. completamente trêmula, como se sofresse de um acesso, ou estivesse sendo eletrocutada. A garota caiu no chão. Nem mesmo Charlie soube como reagir.
            - Ophelia! – berrou Morganna, atirando-se ao lado da filha, com uma expressão inconsolada – Ophelia, meu pequeno anjo, minha ferinha! Olha-me nos olhos! Torna-te de pé e devore esse plebeu insolente! Que fazes caída, trêmula, minha menina?
            Andrew caminhou até o irmão, ajudando-o a se levantar, sempre encarando as duas perigosas mulheres.
            - Cara, essa tal de Morganna de Pompadour falar demais. Por que a gente não...
            Andrew foi interrompido. Um último espasmo de Ophelia, e ela explodiu. Não como uma bomba. Era como se um balão de água fosse atirado contra o muro, espirrando gotas de luzes azuladas em todas as direções. Um clarão azul, como festa de fogos de artifício, inundou a sala, do corpo de Ophelia desprenderam-se duas figuras. Dois pedaços foram arremessados do ponto onde a princesa felina estava, em direções opostas.
            De um lado da sala, uma garota fora cuspida contra uma pilha de livros dispostos sobre uma mesa. Do lado extremo, um gato cinza chapou contra a parede, levantou-se, ressabiado, chacoalhou o corpo e correu, apavorado, em direção a uma estante, subindo nela e refugiando-se.
            A garota levantou-se, ainda zonza. Seus cabelos negros estavam enrolados entre as pernas, ela mal conseguia andar. Embora parecesse muito com Ophelia, não tinha mais os olhos ou as orelhas de gato. Era uma simples garota de testa lisa e olhos castanhos. Perfeitamente normal.
            - Mamãe... – murmurou a garota, olhando as mãos de unhas curtas e rosadas – o que... O que fizeram comigo?
            - Ophelia, minha querida!
            Morganna atravessou o salão, mas fez algo que Andrew e Charlie não esperavam. Ignorou completamente a garota. Foi em direção a estante e, erguendo as mãos em direção ao gato, começou a dizer em voz doce e carinhosa:
            - Venha, Ophelia, minha princesinha, meu docinho... Venha ter com sua mãe.
            A garota encarou a cena, boquiaberta. Não suportando, caiu no berreiro, correu em direção à Morganna e agarrou-lhe as vestes. A rainha chacoalhava a perna, tentando afastar a garota como se esta fosse um saco de vespeiro.
            - Saia de mim, imundície! Aparta, coisa asquerosa! Humana plebe e suja!
            - Mãe! Sou eu, Ophelia!
            - E, ainda por cima, atrevida! Olha-te, criatura! Jamais poderá ser minha princesa, não com essa cara de trapo de ossos e carne de gente humana! Serves apenas como refeição!
            Charlie assistia, completamente atordoado, à cena absurda. O gato, sem entender muito, mantinha-se encolhido sobre a cômoda, protegendo-se das garras da mulher que dizia ser mãe de um quadrúpede.
            - Charlie... – Andrew cutucou o irmão por trás – eu senti algo vindo de mim... De dentro... Dessa coisa.
            Andrew apontou, com a mão boa, em direção ao braço anormal.
            - Saiu algo dele, como um pulso, não sei... Acho que fui eu que fiz isso...
            Charlie fitou o irmão, pasmo. Como seria possível? O que, agora aquela coisa no lugar do seu braço tinha algum tipo de poder bizarro, capaz de converter feras assassinas em menininhas choronas? Era improvável, mas Charlie estava começando a não duvidar de absolutamente nada.
            - Talvez devamos ir embora, que tal? – sorriu Andrew, ainda que, por dentro, quisesse gritar desesperadamente.
            - Isso é uma boa...
            - Não irão a lugar algum! – Morganna berrou.
            Ela estava de frente para os dois, segurando um gato cinza no colo, alisando-o. A menina fora ignorada no chão.
            - Vocês serão nosso petisco! Soldados!
            Dizendo isso, a mulher chiou assim como os gatos fazem quando estão acuados. A cabeleira loura eriçou, fazendo o carretel preso à sua cabeça girar. O gato em seu colo tentou fugir, apavorado, mas as mãos agarravam o animal em uma carícia possessiva e igualmente cruel.
            Da porta de madeira e palha, por onde Morganna saíra, outras figuras igualmente fascinantes começaram a surgir. Cerca de doze homens com aparência felina, usando elmos e armaduras de metal, chiando como a rainha fizera.
            - A mulher tem mais disso aí? – queixou-se Andrew.
            - Minha filha está indisposta no momento, mas meus rapazes vão se encarregar de preparar o prato de hoje. – Morganna sorriu.
            Os homens-gato saltaram, furiosos. Por mais útil que aquela mão asquerosa pudesse ter sido, não seria o suficiente para combater doze daquelas feras humanóides. Seria impossível vencê-los.
            Então, talvez um milagre ou mais um adicional à liste de azares de Charlie, a porta imensa que dava para a biblioteca se abriu, rangendo furiosamente.
            - PAREM JÁ COM ISSO!
            O grito de ordem ecoou em toda a sala, fazendo estremecer janelas, estantes e mesas. O bando de gatos abandonou imediatamente suas investidas e, assustados, os soldados saltaram para trás, cravando as unhas nas paredes, ainda preservando aquelas expressões de poucos amigos. Estavam acuados. Apenas a menina Ophelia permanecia no chão, lamentando inconsolavelmente.
            Andrew e Charlie viraram-se. A grande porta estava aberta e, passando por ela, estava o bibliotecário Munphus, acompanhado de seu filho e sobrinha.
            - O que estão fazendo aqui? – berrou Munphus – e como conseguiram entrar!
            - Imperador Munphus! – vociferou Morganna, interrompendo-o – Permita que eu os devore! São invasores, não merecem tua proteção!
            - Fique longe, Morganna! Chega! – Munphus adiantou-se.
            A cada passo dado pelo velho, o chão estremecia. Das paredes, enormes besouros começaram a brotar. Eram verdes, de patas grossas e casco reluzente. Os insetos encheram todo o recinto e, tão logo, já não se podia ver mais livros ou mesas, tamanho era o enxame.
            Os insetos abriram as asas, zumbindo e refletindo a luz tremeluzente da chama central. Aquilo parecia assustar os homens-fera.  Verdadeiramente, assustava até mesmo Charlie e Andrew.
            - Agora ferrou! – cochichou o caçula – o velho tá furioso.
            - Eu não estou preocupado com o velho – Charlie puxou o irmão para perto do fogo. Os besouros estavam se aproximando com considerável velocidade.
            Munphus encarou os dois rapazes. Encarou o bando de gatos e, virando-se para seu filho, lançou um olhar indecifrável. Por fim, ajeitou os óculos no rosto e falou:
            - Jovens, digam-me. Como conseguiram entrar nesse lugar? – surpresa. A voz do velho era calma e, se possível dizer, chegava a ser simpática.
            - Ahn... Pela porta? – arriscou Andrew, tentando esconder o tom de ironia.
            Munphus balançou a cabeça, pensativo.
            - Como passaram pelo cadeado, e como empurraram a porta?
            Andrew apontou para o irmão mais velho.
            - Foi ele. Ele fez tudo.
            Charlie encarou o caçula, incrédulo.
            - Você? – Munphus falou em tom surpreso.
            O bibliotecário começou a caminhar lentamente em direção ao rapaz, olhando-o com aqueles olhinhos miúdos e cuidadosos, como se analisasse, através da expressão de Charlie, como conseguiram entrar na sala.
            Os besouros começaram a se afastar, formando um círculo em volta do grupo de gatos-humanoides. Eles chiaram, mas permaneceram estáticos, com os pelos eriçados e os olhos cintilando uma fúria contida. Estavam, agora, o velho e Charlie, um de frente para o outro.
            - Você... Tocou o cadeado? Ele te deixou entrar?
            - Acho que sim – respondeu ele, indeciso.
            O velho levou sua mão cansada e enrugada em direção ao rosto do jovem invasor. Segurou-o pelas bochechas, virando seu rosto de um lado para o outro, tocou em seu nariz e, por fim, levantou seus lábios, estudando a gengiva. Parecia estar comprando um cavalo.
            - Fantástico! – anunciou o velho, subitamente, encarando o rapaz – Isso é estupendo! Como é possível, não me pergunte! Mas é! Você é mais um deles!
            - Eu sou? Isso é bom? – Charlie afastou um passo, desacreditando de qualquer gesto amigável do velho bibliotecário.
            Já não era mais Munphus, “o velho cocô”, mas um homem de aparência misteriosa e, de forma suspeita, até divertida.
            - Morganna, leve sua gente de volta... Tenho muito que fazer aqui – pediu o bibliotecário, sem tirar os olhos de Charlie.
            Ela fez menção de queixar-se, dizer algo em sua defesa. Mas, de uma forma muito estranha, eles pareciam temer aquele velhinho de aparência frágil. Charlie achou melhor não subestimá-lo pela sua aparência inofensiva.
            - Como queira, Imperador... – ela sibilou.
            - Espere! O gato e a menina ficam – pediu Munphus.
            - O quê? – Morganna apertou o gato contra o peito, enquanto o bicho tentava escapar a qualquer custo – Mas ela é minha filha!
            - Faça essa gentileza, sim? Prometo levá-la em segurança.
            Não havia o que discutir. As palavras daquele senhor de rosto enrugado regia uma ordem quase palpável, e a simples ideia de contrariá-lo naquele instante parecia uma péssima ideia. As mãos de Morganna afrouxaram e, pesarosa, deixou o animal escapar.
Por fim, na sala ficaram apenas o bibliotecário com filho e sobrinha, os invasores, e as duas partes de Ophelia. Além o enxame de besouros


***

            Morganna e seu bando tinham deixado o lugar. Munphus estava sentado em uma cadeira, acariciando o gato que, preguiçosamente, ronronava e esticava as patas. A menina Ophelia estava em um canto da sala, encolhida, engasgada em lamúrias.
            Helena e Ernesto estavam ao fundo, encarando Charlie e Andrew, que permaneciam ao lado da grande chama. Nenhuma palavra fora trocada até aquele momento. Os besouros caminhavam pela sala vagarosamente, alguns alçavam vôo, exibindo exuberantes asas translúcidas, emitindo luzes de vários tons de cores. Pareciam esmeraldas aladas, pensou Charlie consigo mesmo.
            - Sua mão... – disse, enfim, Munphus – o que aconteceu?
            O velho apontou em direção à mão disforme. Os dedos pareciam ainda mais decrépitos, o braço cada vez mais pesado. Andrew sentou-se no chão, apoiando o braço sobre as pernas.
            - Eu fui... Atacado.
            - Sim...? – Munphus sugeriu com seu simples questionamento.
            - Sombras. – Andrew engasgou. Charlie sentou-se ao lado do irmão – Sombras me atacaram.
            Munphus pareceu analisar a resposta. Permanecia inexpressivo, ainda acariciando o animal.
            - Sombras? Interessante...
            Ele fez uma pausa. Voltou sua atenção a Charlie.
            - O armário 207. Ele é seu, não é?
            Charlie engoliu em seco.
            - Sim, senhor.
            Munphus assentiu, dessa vez, pesaroso.
            - Como conseguiu seu próprio Literadouro?
            Charlie fez cara de confuso. Realmente o garoto não sabia do que se tratava, a não ser o que estava na carta, ainda que não fosse nenhum pouco revelador.
            - Não sei o que é isso.
            - Hum... Entendo.
            O homem permaneceu pensativo, talvez tentando assimilar a situação ou, quem sabe, buscando as palavras certas a serem ditas. No fim, ele concluiu que não seria nada fácil tentar explicar para dois jovens assustados...
            - Uma história de quase três mil anos.
            Charlie e Andrew observavam o velho e suas frases sem sentido aparente.
            - Como disse? – perguntou Charlie.
            Munphus suspirou. Levantou-se, deixando o gato, já sonolento, sobre a cadeira.
            - Sr. Logan, primeiro, peço que confie em mim.
            - É difícil confiar em alguém que te odeia desde o primeiro momento em que te viu.
            O velho riu cordialmente.
            - Eu nunca te odiei, rapaz. Não sou do tipo que odeia...
            Charlie duvidou e sentiu vontade de dizer, mas, de alguma forma, talvez o medo ou a perspicácia do velho, o garoto sentiu-se preso às palavras do velho. Ali, naquela sala cheia de livros, o Sr. Munphus tinha uma influência estranha, quase tão quente e viva quanto às próprias chamas que brilhavam ao seu lado, no centro da sala.
- Eu apenas acreditava – continuou o velho, explicando - que você, assim como todos os jovens dessa geração, tinha o menor dos respeitos pela literatura, livros, e... A Inspiração. Vejo todos os dias crianças roubando-me os livros, estragando as páginas. Eles não sabem que destroem um mundo toda vez que isso acontece... Não, rapaz, eu não tinha ódio... Tinha pena, ressentimento, apenas isso. Mas, agora, vejo que você não é como eles. Isso me enche de alegria, sabe?
O sorriso de Munphus pareceu convincente, mas Andrew cutucou o irmão mais velho, alertando-o de que nada era confiável até que estivessem seguros.
 - Só quero saber uma coisa, rapaz – Munphus, após uma pausa, continuou - Como conseguiu liberar aquelas coisas do armário, noite passada?
            - Eu... Não fiz nada. – Charlie gaguejou, sentindo como se fosse interrogado por alguma polícia secreta e bizarra – Só recebi uma carta, dizendo que tinham feito um... Reparo no meu armário. Depois disso...
            - Carta? – Munphus mudara sua expressão. Estava hesitante – você a tem em mãos?
            Charlie enfiou a mão no bolso, remexendo os bolsos. Não encontrou. Abriu a mochila e lá estava ela, meio amassada, suja de algo viscoso. Era o suco, que ainda não tinha secado.
            - Ahn, tá meio nojento isso aí, mas dá pra ler – Charlie riu, constrangido, entregando a carta ao velho bibliotecário.
            A cada palavra, Munphus arregalava os olhos, parecia temeroso, suas mãos tremeram levemente, mas ele se fez forte.Charlie, no entanto percebeu que parecia ser algo sério. Algo muito sério. Charlie adiantou-se, contando ao velho tudo o que tinha acontecido, desde o aparecimento dos ratos até o ataque das sombras. Talvez estivesse tentando se explicar ou, se não fosse isso, era uma forma desesperada e obter ajuda, ainda que fosse em alguém que não era confiável. Charlie mencionou suas histórias, o livro, o dragão e o zelador. As ideias saíram desconexas de sua boca, mas Munphus conseguiu organizar o retalho de palavras.
            - Você, então, é Charlie C. Galahan? – perguntou o homem, tentando esconder algo mais em seu tom de voz.
            O rapaz simplesmente assentiu, incerto se deveria mentir ou não.
            Munphus suspirou, seus olhos demoraram-s nas chamas, que crepitavam suavemente, tão pacíficas quanto o próprio velho. Finalmente, como se nada mais pedisse por reflexão, o velho bibliotecário falou, inexpressivo:
            - Menino... Eu preciso lhe dizer uma coisa. Venham, aproximem-se. Quero contar-lhes uma história que, para o bem ou para o mal, é a pura realidade. E, Charlie... Você está intimamente envolvido.

1 inspirações:

  1. Quero saber pra ontem que história é essa!
    Trate de postar aqui!rs
    Tá muito bom, Pedro!

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Boa leitura, e vai pela sombra \o/

 
Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos