Memórias Roubadas

Grace e Kevin estavam na sala de recepção. O crepúsculo tingira o céu completamente, e a maioria das pessoas ali já se sentia exausta. Depois de um dia inteiro no asilo, tudo o que os alunos queriam era um pouco de descanso. “Uma excursão no asilo”, era o que os professores haviam dito. Ninguém acreditara que, de fato, seria uma excursão e, tampouco, que seria divertido.
    Pessoas vestidas de jalecos brancos andavam de um lado para o outro, pessoas idosas enchiam o lugar, umas pareciam lúcidas, outras nem pareciam se dar conta de que estavam vivas. Era um mundo completamente diferente, onde a maioria dos pacientes se sentia esquecido pelo mundo, lembrando-se do dia em que foram dominadores, jovens, capazes de tudo, indiferentes a pessoas que passavam pelas situações que eles passam. Ninguém ali dava a real importância, exceto Grace e Kevin.
O rapaz estava olhando a chuva fustigar a janela, as gotas dançando no vidro em um compasso suave e sem ritmo, enquanto Grace procurava uma boa música em seu IPod, mas sem deixar de notar os movimentos de cada pessoa no saguão. Assim que ela encontrou, relaxou a cabeça sobre a poltrona enquanto apreciava as notas harmônicas de Joe Purdy em “The City”. Kevin folheava uma revista, mas parecia não estar atento a ela. A garota percebeu a distração do amigo, que parecia se transportar para um lugar bem longe dali, e pareceu tentador para ela.
    _ Quer conversar? – perguntou Grace.
    _ Hein...
    _ Você está viajando aí, Kevin. – ela deu uma risada, deixando cair um dos fones.
    _ Ah, nada. Só estou imaginando até quando seus tímpanos vão agüentar essa música em uns dois mil decibéis.
    _ Não é tanto assim.
    Os dois riram, trocando olhares rápidos. Kevin jogou a revista na mesa de centro e ficou observando um senhor de cadeira de rodas ser levado para o fim do corredor por uma enfermeira. Grace notara.
    _ Você queria mesmo estar aqui? – ela perguntou – você poderia ter dito que seus pais não autorizaram.
    _ Por que eu tenho que fugir? – Kevin deu de ombros – eu venho aqui umas duas vezes por semana. Não tem nada de mais.
    O silêncio cobriu a atmosfera mais uma vez, pesando na mente de Grace as palavras que pareciam insistir em saltar pra fora de sua boca.
    _ Eu realmente não sei o que dizer numa hora como essas.
    _ Tudo bem – Kevin respondeu – eu só não quero que mais ninguém saiba. Você sabe, os caras da nossa turma vão zoar, e fazendo piadas...
    _ Você não está com vergonha, está? – Grace ergueu uma sobrancelha, curiosa.
    _ Claro que não. – Kevin fechou a cara, evitando o olhar da amiga – eu não tenho motivos para ter vergonha. Eu só não quero ficar o resto do ano ouvindo piadas sobre o meu avô. Alzheimer é uma doença séria, mas esses caras não se dão..
    _ Tudo bem Kevin. Eu entendi. Relaxa. – Grace se levantou, colocando o IPod no bolso, e sentando-se ao lado do amigo – eu só perguntei... Bem, você sabe, por perguntar. É que as vezes você é ilegível.
    _ Desculpe.
    _ Não se incomode.
    Durante algum tempo os dois ficaram ali, em silêncio, observando o movimento pacato dos idosos, o pequeno grupo de alunos que ainda não tinha fugido para comer pizza no restaurante do outro lado da rua. Eles nem se deram conta que o céu estava completamente escuro, exceto por uma lua brilhante, e pontos dourados e discretos distribuídos timidamente no manto negro.
    _ Minha mãe me conta ótimas histórias sobre ele. – Kevin comentou – ele era um charlatão, sabe? Tinha mulheres aos montes, vivia sem preocupar com nada, nem mesmo com a própria saúde. Viajava umas cinco vezes ao ano e apostava tudo o que conseguia nos cassinos. Teve uma vez que ele conseguiu comprar um carro em uma única noite no cassino.
    Kevin riu pesadamente, como se lamentasse por não ter conhecido a melhor e a menos gloriosa parte de seu avô. Grace continuava observando o amigo, tentando encontrar qualquer palavra que pudesse ajudar. Ela pensou em várias coisas, mas nenhuma seria capaz de fazer o amigo se sentir melhor, e com certeza soariam meio bregas.
    _ Você vem muito aqui, não vem? – ela perguntou, fingindo estar interessada na capa da revista que Kevin andara folheando.
    _ Todas as quartas. – Kevin sorriu. Pensou em pegra a revista, mas desistiu - As vezes ao sábado com a minha irmã. Ele adora vê-la. Ele acha que ela é a minha mãe, você sabe, elas se parecem muito. Ele me chama de “Toch”, o apelido do meu tio. Eu me parecia muito com ele.
    _ “Toch”? – ela arqueou as sobrancelhas, sorrindo – por causa do cabelo ruivo?
    _ E as sardas. – ele retribuiu o sorriso, mas não foi tão convincente quanto queria – Todas as noites, antes de ir embora, ele me pede para cuidar da minha mãe. Ele pede que sejamos sempre unidos. Ele não sabe que o tio “Toch” faleceu. De qualquer forma, não adiantaria falar. Ele se esqueceria disso amanha, de qualquer jeito.
    _ É exatamente por isso que eu prefiro viver do meu jeito – respondeu Grace – olha só, você nunca sabe quando vai morrer, ou seja lá o que for acontecer.Eu só quero deitar na minha cama a noite, e saber que eu vivi do jeito que eu pude.
    _ Então quando você chegar em casa, vai perceber que perdeu um dia inteiro?
    Grace ficou pensativa, olhando uma senhora assistindo a televisão, enquanto um idoso tentava tirar uma dentadura de dentro do copo, os gestos muito lentos e precários, como se fosse um grande esforço.
    _ Não... Foi bom estar aqui, ajudar em alguma coisa. Me faz acreditar que os meus pais estão errados quando dizem que eu pareço uma delinqüente.
    _ Grace, você não precisa se sentir mal. Eu tenho que dizer, você as vezes faz coisas que Chuck Norris não seria capaz. Mas, sinceramente, você sabe viver e, quando você tiver filhos, e um casamento... Você vai ter uma história, e eu vou amar estar por perto para poder te ouvir contando.
    _ Casamento, argh!
    Grace fez uma careta de náusea, rindo em seguida. Kevin sabia a opinião da amiga em ralação a casamento e filhos. Se tinha uma coisa que Grace não sabia fazer era assumir responsabilidades. Isso a assustava.
    _ Eu já fiz muitas coisas erradas, Kevin – Grace, de repente, não sorria mais. Colocou os pés sobre a poltrona e ficou brincando com os cadarços do seu allstar – eu não me orgulho disso. Eu tenho dezessete anos, quatro passagens pela polícia, um histórico escolar mais sujo que banheiro público, e um monte de arrependimentos. Pra te falar a verdade, os meus melhores momentos são ao seu lado.
    Kevin encarou a amiga, sentindo que, assim como ele, Grace também sentia que havia perdido alguma coisa. Não, ela sentia que estava perdida. Ele se aproximou da amiga, colocou o braço por cima do ombro dela e puxou-a para o seu lado, deitando a cabeça sobre seu peito.
    _ Você tem boas história para contar, Grace. Momentos que eu gostaria de ter vivido também. Você se arrepende dos seus erros, e isso já é um bom começo.Lembre-se: sempre que precisar, estou aqui, não importa qual seja a sua situação.
    _ É bom estar mesmo. – ela sorriu, segurando a mão de Kevin por cima do seu ombro.
    Os dois continuaram observando o movimento sonolento, e a maioria dos idosos já estavam se preparando para dormir, apenas uma ou duas senhoras insistiam em manter os olhos bem abertos para os programas de auditório noturnos.
    _ Vou te dizer uma coisa. Não pense que eu sou uma pessoa ruim... Mas, eu acho que seu avô tem sorte.
    _ Sorte? Eu acho que isso se chama Alzheimer.
    _ Não, eu falo sério, besta. Quer dizer, pense bem. Ele foi um homem entregue ao mundo, você mesmo disse. Tudo o que ele fez de errado, todos os arrependimentos, as coisas das quais ele não se orgulha... Tudo foi apagado. Não existe culpa, nem remorso. Se não fosse uma doença, eu chamaria isso de bênção.
    _ É uma ponto de vista. Mas, pense um pouco... E os bons momentos? O dia em que o primeiro filho nasce, o primeiro dia na faculdade, os natais em família, as loucuras que só acontecem ao lado dos amigos. Você gostaria de apagar tudo o que viveu?
    Grace ficou pensativa, mas não respondeu. Kevin sentiu a incerteza da amiga esvair do corpo através da respiração leve.
_ Existem bons momentos também. Momentos que merecem ser lembrados, que valem a pena. Eu te digo uma coisa: dê-me arrependimento, se pra isso for preciso me lembrar dos melhores momentos da minha vida.
    Grace fitou Kevin, sentindo cada palavra atingir seu rosto como uma brisa quente, uma sensação inexplicável, completamente verdadeira, algo que ela gostaria de guardar na memória pra sempre.
    _ É... Tem razão. Eu não me perdoaria se, algum dia, eu me esquecesse de você. – Grace olhou pela janela, sorrindo para a lua gigantesca.
    As palavras de Grace chegaram ao rapaz como uma brisa quente, um hálito morno que tranqüiliza em tempos de frio. Ele sorriu para si mesmo, satisfeito em saber que era relevante na vida de alguém.
    _ Eu gostaria de poder fazer qualquer coisa pelo meu avô – comentou Kevin, pensativo – eu gostaria de, pelo menos uma vez, ter conhecido o homem aventureiro que todos falam. É estranho sentir saudade de alguém que não existiu.
    Grace levantou a cabeça, jogando as pernas por cima do braço da poltrona, ainda olhando o amigo.
    _ Em algum lugar no coração dele, seu avô sabe quem você é, e com certeza sente muito orgulho do neto.
    _ Você acha?
    _ Não tenha dúvida. Nenhuma doença pode esconder o fato de você ser uma pessoa incrível.
    Kevin encarou a amiga. Ela esteve sempre ao seu lado, incentivando-o, cultivando uma amizade que tinha um potencial ilimitado, uma força inquebrável, onde nenhuma doença poderia apagar aquelas memórias, onde o coração se encarregaria que preservar os melhor momentos, mesmo que o cérebro falhasse. Naquele momento, Kevin pôde enxergar a nobreza que existia por traz de Grace, a rebelde de enorme coração.
    _ Sabe de uma coisa? Vou fazer uma loucura.
    Kevin se curvou e roubou um beijo de Grace. Sentiu seus lábios se tocarem por um segundo, e o hálito quente aqueceu a noite fria, sem se importar se alguém poderia vê-los, o que poderiam dizer no dia seguinte. Eles só queriam demonstrar o valor que um tinha para o outro. Eles ficaram se encarando, até, finalmente, Grace decidir colocar a cabeça sobre o ombro do rapaz, sem dizer uma palavra, sabendo que nenhuma palavra no mundo havia sido escrita, suficientemente boa para descrever aquele momento.
    _ Eu te amo. – ele disse, quebrando silêncio – do jeito que você é.
    _ É. Eu acho que gosto de você também.
    Grace se encolheu e Kevin envolveu-a em um abraço indescritível, tão tenro para ser uma paixão, mas forte demais para ser apenas amizade. Eles estavam em uma transição, mas não queriam pensar nisso agora.
    _ Kevin...
    _ Hum...
    _ Me faz um favor... Não me deixa te esquecer. Nunca.
    _ Pode deixar, suas memórias estão seguras comigo.  
    Lá fora, a chuva decidiu cair pela segunda vez, lavar o céu e clarear a calçada do outro lado da rua, uma noite onde todos podiam se sentir donos de sua alma, líderes de suas vidas, absolvidos de seus erros, como se as boas lembranças tornassem as ruínas apenas uma imagem borrada na mente, irrelevante, sem sentido. E nada daquilo iria trazer arrependimento. Aquela noite não seria carregada pela chuva como uma lembrança a ser esquecida, mas uma boa memória a ser emoldurada e pendurada na parede, onde poderia ser admirada como uma obra de arte do tempo, um momento, uma única cena pintada pelas mãos de pessoas que viviam os mesmos caminhos. Não havia arrependimento, nenhum sequer.

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Esse conto é inspirado na série One Tree Hill, e dedicado àqueles que tiveram suas lembranças roubadas pela doença Alzheimer.

1 inspirações:

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Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos