A noite caiu antes do esperado. Afinal, estiveram tanto tempo presos em uma realidade absurda que, se fosse possível negá-la, o jovem Charlie diria apenas que foi um sonho longo e realístico. Mas não era, e ele sabia disso. Charlie e o irmão decidiram que seria melhor não contarem aos pais que faltaram à aula. Se o fizesse, seria provável que o irmão mais velho arcaria com a responsabilidade, cem porcento de culpa. Não era uma situação incomum, pensou Charlie, desanimado.
Munphus pediu que esperassem um pouco mais, e foi difícil perceber se ele estava sendo realmente caridoso ou se era simples curiosidade nos dois rapazes invasores. O bibliotecário pediu que Andrew permanecesse na sala e analisarem a mão bizarra, enquanto Charlie, Helena e Ernesto encaravam-se sobre o balcão da biblioteca já fechada.
Na mente de Charlie, uma desculpa começou a se formar, tudo para evitar um comentário ácido do pai que se queixaria quando chegassem tarde da noite em casa. Mas a situação o fez lembrar-se do que lhe ocorrera em suas últimas mentiras. Não, não seria esse o caminho que ele queria trilhar novamente. Decidiu focar toda a sua preocupação no irmão caçula que, naquele momento, deveria estar praguejando contra o braço disforme, presente das sombras do armário.
- Não se preocupe – avisou Helena – meu tio ligou para sua mãe, disse que vocês ficaram aqui conosco. Disse, também, que os levaria pra casa.
Charlie abandonou seus pensamentos por um momento, grato por não precisar mentir, mas sentindo-se culpado por ter feito Munphus mentir em seu lugar.
- Ele não vai nos levar, ou vai?
Ela riu, negando com a cabeça. Charlie sorriu, desanimado ao perceber que teria de caminhar a pé até sua casa. Boa, velhote, pensou Charlie. Se vai mentir, faça direito, o segundo pensamento veio com um ar de ironia.
O silêncio poderia ter sido uma boa companhia naquela noite, mas as histórias que Charlie ouvira ainda enchiam sua mente com perguntas que desejavam uma resposta direta. Não sabia por onde começar, mas sabia que deveria começar de algum jeito:
- Então... Quando irei ver, de fato, o Literadouro?
Helena trocou um olhar de desdém com o primo, que fez questão de mostrar sua insatisfação com a pergunta.
- Não tão cedo. Já não foi o suficiente encarar a Rainha de Kanwitcha?
- Não, acho que não. – admitiu ele, surpreso por não ter tanto medo da situação quanto o medo de jamais ter uma resposta sobre o mundo que o cercara todo esse tempo e ele jamais pôde explorar - Eu tenho ainda algumas perguntas para o seu tio. Por exemplo, depois que ele descobriu quem era o verdadeiro Charlie Galahan, ele me olhou com... Hesitação, ou algo mais. Por quê? Quer dizer, é só um pseudônimo, certo?
- Bem, acontece que você é um dos melhores escritores que o tio Munphus já viu e, quando um Inspirado escreve ou pensa, ou sonha (ou seja lá o que vocês fazem) tudo isso fica registrado no Literadouro, nos galhos da grande Árvore.
- Grande Árvore? Que Grande Árv...
- Não interrompa, eu ainda não acabei. – Helena fez um gesto brusco e, num pigarro, prosseguiu sua explicação - Bem, quando se usa a Inspiração, a criação torna-se real. E, de todos os personagens, o meu tio era um admirador dos seus... Grimos, os inimigos Imperador Gregorius e Rei Theodore...
Charlie lembrou-se deles. Os dois últimos foram criados naquele dia em especial, a primeira vez em que entrou na biblioteca, sem saber o que estava escondido, quando ainda não conhecia a si mesmo.
- Acontece que nunca vimos isso acontecer. É a primeira vez que o pseudônimo é usado em lugar do verdadeiro nome. Na sala de livros, atrás daquela porta, tem uma estante só com “histórias, pensamentos e contos de Charlie C. Galahan”. Entende, Galahan. Não Logan. Tio Munphus está preocupado, mas não podemos fazer muito, os Corsários ainda não nos deram nenhuma direção. Eles só nos trazem as mensagens quando consideram pertinentes.
- Mas meu pai – continuou Ernesto - sempre teve muita hesitação por Charlie Galahan, por causa do...
- Sobrenome? – completou Charlie.
- Exato – ela murmurou, pesarosa – ele nunca encontrou Charlie Galahan em sua busca pelos Inspirados, então começou a acreditar que, talvez, se tratasse do próprio Northon, escondido, tramando alguma coisa. Acho que quando ele leu a sua carta, todas as teorias dele sobre “como Northon fugiu do Vazio” foram por terra. Mas á dúvida persiste, porque ele continua sem entender como um nome de alguém que não existe pode estar contido no acervo de criações da Inspiraçao.
- Sinto muito...
- Tudo bem, meu tio deve estar feliz por saber que você não é Northon. Mas acho que ele ainda desconfia de muitas coisas... Por que você adotou esse nome, é o que ele deve estar se perguntando agora.
Charlie escondeu seu temor. Não havia uma resposta para essa pergunta se eles esperavam que Charlie a tivesse. Ainda que cavasse fundo em suas memórias, não conseguia lembrar-se de onde viera a ideia súbita de um nome fictício. Simplesmente, um dia, estava assinando um pseudônimo no lugar de seu verdadeiro nome. Seria, mesmo, algo para se preocupar? Charlie preferiu desviar o assunto para qualquer coisa que não se referisse a ele mesmo.
- Esse tal Andarilho do Tempo... O que ele faz de tão especial?
Helena deu um sorriso sarcástico.
- Ele é só a Fabula Prima do Meio-Termo. Ele vagou por todos os mundos, colhendo informações, obtendo conhecimento sobre tudo, sobre todos. Ele não precisa que aconteça o Despertar do Vazio, o Doomsday ou o Hagnarock pra conhecer todos os mundos e transpor os limites que nos cercam. Ele acabou descobrindo como viajar no tempo. Alguns dizem que ele avançou no tempo, e nunca mais voltou. Ele é a forma mais fácil de se obter a resposta para o Despertar do Vazio... E como impedi-lo também.
- Ele é do mal? – Charlie arriscou a pergunta, mas logo sentiu a infantilidade em seu tom de voz. Era patético, no entanto ele não saberia definir os lados, a não ser “bem” e “mal”. Ele logo percebeu que, em verdade, não saberia definir nada do novo mundo que estava para descobrir.
- Claro que não! Ele nos salvou das ideias macabras de Northon! Mas não sei se isso faz diferença. Ele nunca mais foi visto. Alguns se atrevem a dizem que o Andarilho é só um mito bobo. Mas eu acredito. Sei que o Andarilho está por aí, em algum lugar...
Charlie pôde vislumbrar uma luz intensa nos olhos de Helena, uma mescla de esperança e medo, traços de sentimentos que ele tão bem entendia.
O rapaz aproveitou o silêncio para absorver a informação. O rapaz não se lembrara da última vez em que exigira tanto de sua sanidade e equilíbrio psicológico, e temeu não tê-los em quantidades suficientes. Mas poderia ele escapar dessa situação? Depois do ocorrido com Ophelia, ele duvidou disso.
- O que vai acontecer com meu irmão, agora? – perguntou Charlie em nítida preocupação. Não importava que suas intenções tivessem sido as melhores possíveis quando abandonara o irmão no corredor da escola. Tudo o que ele queria era proteger o irmão caçula, mas ao invés disso, deu a Andrew um sofrimento inesperado.
Dessa vez foi Helena quem deu de ombros.
- Não tenho ideia do que seu irmão tem. Nunca vimos nada parecido. As sombras vivas, como vocês disseram, são novidades para todos nós.
- Provavelmente meu pai está lendo suas histórias nesse instante – falou Ernesto – procurando pelas tais sombras.
- Eu não as criei. – protestou Charlie, em sua defesa.
- Logo vamos saber... Tudo o que você escreve é “arquivado” no Literadouro... Logo saberemos de onde, raios, vieram essas sombras, e se podemos ajudar seu irmão. Só espero... Oh, não.
Ernesto parou de falar, olhando, apreensivo, em direção a uma janela da biblioteca, no ponto mais alto. Havia uma pequena fresta aberta, o suficiente para permitir a entrada um pombo. Mas não foi uma ave que passou pela janela.
Um besouro, ligeiramente menor que os demais, sobrevoou o teto da biblioteca, parecendo eufórico demais para um inseto pacato. Girou no ar duas vezes e, por fim pousou sobre o balcão, agitando as frágeis asas brilhantes. O minúsculo animal ressoava um ruído metálico, como se agulhas chovessem sobre uma placa de alumínio.
- Isso é um Corsário? – perguntou Charlie, reconhecendo o totem do bibliotecário.
- É um dos espiões dele – avisou Ernesto – papai solta alguns de seus corsários pela cidade para vigiarem as movimentações, digamos, anormais. Esse aqui está muito inquieto. Com certeza foi uma aparição.
Charlie fez uma expressão de dúvida.
- O Meio-Termo cuspiu alguma coisa – explicou Helena sem delongas – é nosso trabalho devolver a aparição ao seu lugar.
- Como fizeram com o meu dragão?
Mais uma vez, Helena e Ernesto trocaram olhares ilegíveis.
- Isso é outra coisa que precisamos explicar depois. – avisou ela – vamos.
- Vamos? – Charlie fitou a garota – vamos aonde?
- Ora, você vem com a gente. Ou, por acaso, não está interessado em ver uma aparição?
Charlie ficou de pé. Como antes, estava tomado pela curiosidade.
- Mas vou logo avisando – Ernesto falava em tom de ameaça, apontando o dedo em direção às fuças do rapaz – fique longe, apenas olhe, e tente fingir que não está lá. Isso seria ótimo.
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- Basicamente, eles ficam desorientados quando chegam aqui – explicava Helena, enquanto os três jovens pedalavam pela avenida principal.
O vento estava morno apesar da noite fria, o céu salpicara-se de estrelas amarelas e a lua exibia seu perfil contorcido pelas ralas nuvens. Era uma noite paradoxal, percebeu Charlie, divagando em pensamentos ao passo em que ouvia vagamente as palavras de Helena. As bicicletas rangiam, desafiadoras ante o silêncio sepulcral da noite.
- A mudança de ambiente pode desestabilizá-los um pouco, uma vez que o Vazio e o Meio-Termo possuem densidades atmosféricas diferentes, isso por causa da carga de Inspiração contida no ar. Quando entram em nosso mundo, ficam sonolentos, por isso, geralmente, conseguimos neutralizá-los antes que criem grandes problemas.
- Como sabem para onde ir?
- Siga o besouro – Ernesto apontou para o alto, onde uma bolinha verde reluzente sobrevoava apressada – mas não o perca de vista, ele não se importa se é, ou não capaz de vê-lo. Corsários podem ser muito temperamentais. Vamos, chega de papo!
O inseto os levou até uma enorme praça, rodeada por prédios, onde centenas de pessoas caminhavam, muitas delas apressadas. O céu negro fora intimidado pelos arranha-céus de concreto, era quase impossível ver uma única estrela boiando acima de suas cabeças. As sombras das imponentes construções projetavam-se na calçada. Nem mesmo o passar das horas intimidava os nova-iorquinos, que, tranquilos, ainda enchiam as ruas da grande cidade.
As correntes das bicicletas chiaram um choro que minguava na medida em que desaceleravam, guiados pelo ritmo do inseto cor de esmeralda. O besouro rodopiou em um frenesi irritante, pairou alguns segundos e, enfim, ficou imóvel no ar. Charlie percebeu que esse era o sinal, a aparição deveria estar por perto.
A praça em que chegaram tinha uma fonte circular onde três belas mulheres de pedra esvaziavam seus jarros que transbordavam eternamente, ou até que a companhia de água desligasse o fluxo de água. Nas bordas da fonte algumas pessoas sentavam-se e molhavam os pés em suas águas límpidas, enquanto outras mais desocupadas atiravam moedas e sonhavam seus mais íntimos desejos. Os bancos espalhados pela praça eram todos de concreto e, por mais que as árvores se esforçassem, simplesmente não conseguiam afastar o ar extremamente urbano, o que era óbvio, se tratando de Manhattan. Ainda assim o aroma agradável de flores e grama molhada conseguia fazer-se notado.
- O que deveríamos estar procurando? – perguntou Charlie.
- Sinta, Charlie. Apenas sinta – avisou Helena – a vibração deles é diferente, e nós somos capazes de sentir. Apenas feche os olhos e deixe que a própria aparição o atraia. Não precisa fazer esforço algum... Basta ser guiado pela Inspiração.
Charlie ouviu, atentamente, mas, como se o desejo fosse ainda mais forte, ele riu. Uma atitude imbecil, ele logo se deu conta, mas toda aquela tagarelice de “sinta a energia” era um clichê cuspido na cara e, ainda que sua vida em menos de uma semana tivesse sido aventuras para uma vida inteira, aquela baboseira soava infantil e tola.
- Foi mal, galera... – ele soluçou as palavras entre risos – mas, guiado pela Inspiração? Sério mesmo? Quer dizer, eu tenho que entrar em contato com o meu chi e abrir os portões da minha aura? Isso é lindo, sabem. Lindo...
- Esse imbecil não deveria mesmo ter vindo – Ernesto cruzou os braços, encarando Charlie com profunda desaprovação – Ele acha que isso é uma brincadeira, Helena!
- Charlie, quando uma aparição estiver ao seu encalço, sei lá – um dragão, quem sabe! – você pode começar a rir. Se isso te ajudar, então eu vou rir junto com você!
- Não, não foi isso que eu...
- Você quer rir, Charlie? – Helena caminhou em direção a Charlie e, com autoridade, meteu-lhe o dedo no peito, pressionando com agressividade a cada palavra minuciosamente pronunciada – Ria quando seu irmão estiver estrebuchando com uma mão deformada, e um dragão quiser fritar o seu traseiro! Você pode rir incansavelmente quando mil sombras estiverem atrás de você! Eu tenho certeza que você que você se sairá muito melhor sem a Inspiração! Não é mesmo, Charlie Galahan?
Não eram apenas palavras e gotas de saliva que acertaram o rosto ruborizado de Charlie. A própria ofensa se materializara a sua frente e, agora, personificada em uma ruiva atormentada, tentava furar-lhe o peito com um dedo inquieto.
- Ok, Helena, sinto muito... – ele balançou as mãos em defesa, sentindo sincera vergonha por ter zombado da situação – eu não quis...
- Tudo bem, Charlie – e então Helena afastou-se, agora com uma expressão leve, mas séria – Você ainda tem muito o que aprender... Só espero que sobreviva até saber o que precisa.
Ela sorriu antes de dar as costas ao rapaz e concentrar-se em qualquer coisa que não fosse no ceticismo de Charlie. Aquele conflito fora o suficiente para que o rapaz se sentisse um trapo fedido, nem mesmo Ernesto dignou-se a chutar cachorro morto e triturado.
Resignado e seguindo a dica de Helena, Charlie fechou os olhos na tentativa de sentir a tal Inspiraçao. Sentiu-se um imbecil, mas saber que ninguém o observava tornou o ato menos constrangedor. Aos poucos ele foi se entregando às sensações provocadas pela noite e pela discussão acalorada, deixou que apenas sua respiração influenciasse seus pensamentos, sentindo o ar entrando e saindo pelas narinas mornas, enquanto a pouca brisa atiçava seus cabelos. A princípio, nada aconteceu, e queixou-se mentalmente por não ter uma resposta rápida. Seria ele realmente capaz de sentir a Inspiração? Afinal, isso existia de fato, ou era tudo uma fantasia que o prendia num sono profundo? Ele desejou acordar em casa, no conforto de sua cama, sabendo que mulheres-gato não comem gente e dragões só existem em contos de fadas. Mas a solidez daquele dia gritava contra esse pensamento tímido. Não havia como escapar. Munphus era um bibliotecário cheio de mistérios e, para o bem ou para o mal, Charlie fazia parte desse grande segredo escondido dos olhos curiosos do mundo.
Quando estava prestes a desistir de ser guiado pela tal Inspiraçao, foi engolfado por uma súbita rajada de ar frio, que parecia circular a sua volta, detendo-o ali mesmo. A sensação dançava pelos cabelos eriçados de seu braço, caminhava pelo pescoço e enchia seu pulmão de um ar quente. Era uma vibração tão nova, uma sensação jamais sentida antes que, ele pensou, não se incomodaria em ficar preso à esse estado pelas próximas horas. Se aquilo era a Inspiração da qual Helena falara, ele definitivamente gostava.
- Estou sentindo algo! – Charlie sorriu, eufórico, com os olhos abertos e em alerta. Pela primeira vez, sentiu-se diferente, destoante de seu mundo normal e com sentimentos previsíveis, uma experiência nova que mexia com todos os seus sentidos de forma sobrenatural – uma brisa! Ela está ganhando todo o meu corpo! É incrível
- É o nosso alvo! – avisou Ernesto – vamos, sigam a corrente!
Eles começaram a correr pela praça, fazendo caminho em meio às pessoas que esbarravam, e retribuíam com um palavrão. A presença da aparição condensava-se e, a cada passo, tornava mais real. Era como se Charlie mergulhasse numa banheira cujo sabor das águas despertassem no paladar um gosto jamais conhecido pelos homens. Não importava se jamais pudesse ver uma aparição sequer. A simples presença dela dava-lhe a certeza de que seu mundo era muito mais extraordinário por trás das cortinas da normalidade.
- Lá! – exclamou Helena, detendo os dois rapazes pelo braço – vejam!
Logo à frente, havia uma mulher com uma criança num carrinho de bebê. Ambos estavam próximos a uma árvore de galhos longos e recheados de folhas abertas. Mãe e filho eram entretidos amistosamente por uma figura curiosa. A aparição era um homem coloridas e espalhafatosas, com tiras de tecidos presas nas mangas compridas do collant berrante. Seu pescoço comprido e magro dava a impressão de uma cabeça flutuante. Suas costas eram adornadas com penas azuis e amarelas, semelhantes à cauda de um pavão. As feições da aparição lembravam a de um palhaço de circo, porém de forma bastante escandalosa. Os lábios finos eram exageradamente pintados de preto, o rosto alvo como floco de neve era maculado por duas bolas amarelas pintadas nas bochechas, enquanto as sobrancelhas eram vermelhas e grossas, como uma lagarta.
- É ele? – Charlie perguntou – Ele não parece muito... Humano.
- E não é mesmo... Vamos, temos que ser cautelosos, não sabemos o que ele é capaz de fazer.
- É uma aparição do Meio-Termo, com certeza – falou Helena, decidida – O Vazio não costuma mandar aparições tão dóceis.
Enquanto caminhavam em direção ao palhaço, a mulher se despedia com um sorriso, empurrando o carrinho do bebê. A aparição fez uma reverência cordial e acenou, contente com o riso da criança. O rosto do palhaço iluminou-se de contentamento e, alheio ao trio que caminhava em sua direção, girou pelos calcanhares em comemoração.
- Ele me parece gentil – comentou Helena.
A criatura sentou-se ao lado de um homem e pôs-se a fazer gestos com as mãos, lembrando muito a linguagem de sinais. Para espanto do trio, o homem respondeu da mesma forma, gesticulando com habilidade e, logo perceberam, travara-se um diálogo entre aparição e homem, uma linguagem silenciosa, mas cheia de sentido. Então o habitante forasteiro de um mundo fantástico também sabia falar com surdos-mudos, além de mulheres e crianças! Aquela figura não era mais um mistério para Charlie. A aparição representava tudo o que o rapaz queria conhecer, tudo o que sempre sonhara. Suas mentiras, suas complicações trazidas pelas invenções imaginárias exageraras, nada disso era real. Suas mentiras, afinal, não eram mentiras. Charlie sentiu-se, pela primeira vez, como a pessoa que deveria ser.
- Hei! – gritou ele, correndo em direção ao alvo, num impulso instintivo – Hei, senhor...
A figura o encarou, confusa.
- Não se aproxime dele, Charlie!
O aviso de Helena não foi ouvido. Charlie saiu em disparada, desvencilhando-se da mão alerta de Ernesto. A aparição recebeu o rapaz com um sorriso simpático, dando a ela um aspecto ainda menos humano. Mas isso não foi um fator para afugentar Charlie. Era, agora, a única coisa que o jovem Inspirado queria, conhecer um pedacinho, ainda que ínfimo, do mundo que tornara dele alguém importante, e não um mentiroso problemático.
- Jovem encantador... – as palavras do palhaço soaram gentis e suaves, como se cantasse, assim que Charlie aproximou-se da aparição – Que bela presença tens!
A reação do ser fantástico surpreendeu Charlie. Seria assim, tão simples, conviver com as criaturas do Meio-Termo? Charlie desejou viver nesse novo mundo.
- Ahn, obrigado – Charlie sorriu, sem saber o que dizer, ou mesmo se deveria dizer alguma coisa – eu digo o mesmo.
- Charlie! – a voz de Helena ecoou ao longo da praça, afugentando as aves dorminhocas que se aninharam na copa das árvores.
- São amigos seus? – perguntou a figura – Pois são belos e de presença fantástica! Como a sua própria! Lindos, vocês são! Esse mundo é lindo, se me permite dizer.
Charlie riu. Não por haver uma explicação, ou por achar engraçada a forma singular como o palhaço conversava. A simples presença da criatura parecia ser um motivo para se estar feliz, e logo Charlie percebeu que, talvez, fosse um dom natural do ser tão espetacular à sua frente.
- Olha, senhor... – Charlie começou a dizer, sem delongas – Sei que o senhor deve estar admirado com o meu mundo, mas... Nós viemos te buscar, se não se importa.
O palhaço o encarou mais uma vez, não tão confuso como antes.
- Oh, então é verdade! Não estou em Douprèe, estou?
O rapaz fez que não com a cabeça, sem saber, ao certo, o que, exatamente, era Douprèe.
- Aqui é Manhattan.
- Oh... Manhata? – a voz do palhaço soou etérea e divertida - Lindo nome, tem gosto agradável.... Manhata, Manhata, Manhata... É doce, não? Lembra-me lírios, mas não brancos, pois estes crescem em nas terras longínquas de Garssaf. Lembra-me muito Doroteia, mas sem as mulheres de pedra, aquelas que jogam fora toda a água de seu povo...
Charlie não pôde evitar o segundo desejo de rir. O palhaço mostrou-se ainda mais divertido diante da reação do rapaz.
- Chamo-me Clown di Douprèe, ao seu dispor. Vim das colinas de Miohratnak... – a aparição apontou para o céu numa reverência exagerada, lançando ao negro da noite um olhar cheio de generosidade - Eu estava dançando para os jovens da vila, quando, de repente, uma luz enorme e igualmente encantadora me cegou. Foi como se me levassem para longe... E eu acordei aqui... Vossa Bondade seria capaz de me mostrar o caminho de volta?... Gosto do povo de Manhata, mas... Quero voltar pra casa. Não me sinto bem aqui, ainda que seu povo seja bastante acolhedor e de fáceis sorrisos.
- Tudo bem – Charlie falou, enquanto Helena e Ernesto paravam diante deles – Vamos ajudá-lo, não é, pessoal?
O Clown fitou o trio, em especial para a ruiva que ofegava , e com um gesto de submissa reverência, agradeceu.
- Eu seria eternamente grat...
- Charlie! – berrou Helena, furiosa, ainda arfando devido ao esforço – nunca mais faça isso!
- Fazer o qu...
Charlie não completou a frase. O colarinho de sua camisa fora brutalmente agarrado por duas mãos furiosas. Ernesto deteve Charlie com uma facilidade que assustou até mesmo Helena, mas ela não se queixou, estava exasperada com a atitude irresponsável do amigo.
- Eu avisei! – Ernesto trincou os dentes, e Charlie percebeu que o primo de Helena fazia mais força para conter o ímpeto de socar o rapaz no rosto do que erguê-lo pelo pescoço – Eu avisei para agir como se não estivesse aqui! Mas você não ouve! Voce sim-ples-men-te não ouve!
- Cavalheiros, cavalheiros! – Clown di Douprèe aproximou-se, alardeado, segurando os jovens pelos ombros – um soco dura um segundo, mas reverbera o corpo por dias, se me permitem dizer. Seria mais fácil resolver os problemas com uma música, não seria?
- Música? – Ernesto ignorou Charlie por um segundo, fitando o palhaço com desdém – vou te mostrar a música, seu pomposo, quando enfiar meu pé no seu trasei...
BAM!
Foi o som surdo que interrompeu o discurso colérico de Ernesto. O acontecimento que se seguiu foi tão repentino, não houve meio de reagir ante a situação.
Clown de Douprèe caiu, estatelado, com o rosto pregado no chão, puxado pelos calcanhares. Charlie nem percebera o que acontecera até visualizar a cena: uma densa mancha negra cobria todo o chão e estava arrastando o Clown o mais longe possível do trio.
- Hei! – gritou Charlie – Que droga... As sombras! Helena, as sombras!
O palhaço começou a ser arrastado ao longo da praça, como se puxado por uma corda invisível enganchada no seu calcanhar. Tão logo Charlie reconheceu. As sombras estavam envolvendo as pernas do Clown di Douprèe.
- Salva-me, criança! – berrava o palhaço, chamando a tenção dos transeuntes, que assistiram à cena, atordoados – Não deixe que me levem! Isso dói!
Um rastro de sangue começou a ser deixado por onde o Clown passava. Estavam ferindo a pobre aparição, e as sombras eram completamente apáticas às queixas de dor de Clown. Charlie empurrou Ernesto para longe e correu em disparada, rumo à aparição. Era como, pela segunda vez, ter roubado pelas sombras o direito de ser ele mesmo, o direito de viver o mundo que a Inspiração lhe prometia. Charlie não queria permitir que isso acontecesse novamente, mas seu corpo era fraco demais para alcançar as sombras ágeis e sorrateiras. O palhaço fora lançado em direção aos arbustos, e a aparição foi completamente coberta pelas folhagens.
- Não! – berrou Charlie, se lançando contra os arbustos.
Enfiou a mão entre os ramos, revirando tudo. Arrancou galhos, cortou a palma das mãos, mas nada encontrou. Ernesto e Helena estavam ajoelhados ao seu lado, afastando os galhos e procurando pelo palhaço do Meio-Termo. Mas não havia nada. A aparição, simplesmente, sumira.
Todos à volta começaram a aplaudir, alguns paravam sua habitual caminhada para se admirarem com o espetáculo. “Como fazem isso?”, murmuravam uns. “Esses artistas de rua... Gostam de se exibir...”, outros mais amargurados diziam.
O que ninguém havia percebido, no entanto, era que não se tratava de uma encenação. Literalmente Clown di Douprèe fora tragado pelas sombras.
Ok, ou você posta, ou você posta. Decida-se, ou ficará careca antes do tempo. #lixandounha
ResponderExcluirok, eu posto xD
ResponderExcluirmas calma lá, que não é fácil rsrs
AMO sua estória. Ela é Incrível!
ResponderExcluirVocê criou um mundo totalmente novo e encantador.
É simplesmente uma estória mto gostosa de se ler :)
Vc por acaso, é um autor profissional?!
Bjs ♥!!!
E por favor posta logo ;)