Briga de Vira-Latas [by Pedro Almada]

     Olá, amigos leitores!
    
     Faz tempo que eu não posto nenhum conto, nem nada do tipo, né? Na verdade, nem sei dizer quando foi a última vez que fiz isso! Mas hoje eu tirei o dia pra mostrar a vocês um conto que escrevi para a seleção na antologia "Sexo, Livros e Rock'n Roll", da editora Estronho. Infelizmente não fui aprovado na seleção, mas a coisa tava feia mesmo, era muita gente talentosa competindo. Mas, um dia, eu ainda consigo outra vez! xD
     Deixo vocês com o conto, espero que curtam. Boa leitura!


Briga de Vira-Latas

Dog Eat Dog – AC/DC

     Agora, era matar ou morrer. Foi essa conclusão a que cheguei quando fomos chamados. Meus olhos cruzaram o olhar daquele patife miserável que sempre tentou me fazer comer bosta. Mas eu também sabia cozinhar um bom menu encagaçado. Se era guerra o que ele queria, poderia então se considerar um bastardo satisfeito, pois eu já estava construindo minha trincheira.

     Estávamos na sala do diretor, cada um em um canto do cubículo com cheiro de fumo e creme pós-barba. Suspeitei, logo de cara, que aquela coisa de “espaço do macho”, com cinzeiros e cores rudes, era mais uma estratégia do bom e velho Diretor Silva de nos botar um bocado de medo. Poucas vezes isso funcionou comigo e, para minha infelicidade, o mesmo valia para o meu detestável parceiro de cela bem ali.
Nossos olhares hostis cessaram no instante em que a porta se abriu. Entrou em cena, então, o Diretor Silva. Ele não era tão assustador como gostava de mostrar, era mediano e cabelos pretos, além de um olhar jovem e despreocupado, mas havia uma pequena cicatriz em sua bochecha esquerda, uma marca que sempre despertou a curiosidade dos outros alunos e, de certo forma, ajudava a criar a imagem de respeito que o nosso diretor se esforçava em construir.
    - Ora, ora, ora – o bom e velho clichê “vejam só quem está aqui”, foi o que o Silva disse – vejam só, se não são meus adoráveis alunos do 3º ano B.
    - Bom dia, senhor – disse o meu camarada no outro canto da sala. Jotão, esse era nome do patife.
    - Não, Jotão. Não é um bom dia, porque precisei sair do meu sossego para vir ver vocês dois. Sempre se metendo em confusão, hein, rapazes? – replicou o homem e, no mesmo instante, lançou-me aquele olhar intrigado, como se pensasse “e você, o que tem a dizer?”. Banquei o bom moço, boca fechada e tudo o mais.
    A primeira coisa que o diretor fez foi nos aplicar o bom e velho sermão. As mesmas lições de moral e um pouco de exemplo de vida, com direito até mesmo às citações de Einstein e Charles Chaplin. Seria lindo se não fosse, antes de tudo, entediante. Tudo isso porque queimamos a bandeira da pátria no mastro, numa aposta de truco. Depois disso, claro, eu e Jotão nos embaralhamos numa briga, porque ninguém queria dar o braço a torcer. Eu não tinha roubado o sete de copas! O cara era um mau perdedor, isso sim!
    - Vejam bem – disse Silva, enfim, indo direto ao ponto – Eu pensei muito, não sabia o que fazer com dois irrecuperáveis como vocês. Por fim, não vi alternativa... Eu fiquei sabendo do livro rondando os corredores dessa escola.
    Eu pisquei duas vezes, absorvendo a informação. Sim, eu tinha ouvido falar sobre aquele boato. Mas não sabia o que isso tinha a ver com a confusão do dia.
    - Alguém – continuou o diretor – e quando eu digo “alguém”, eu quero dizer “um de vocês”, trouxe para essa escola um livro que, hã, não condiz com os padrões de ensino Os meus padrões.
    Ele nos olhou e, percebendo que não reagíamos àquela conversa, falou logo:
    - Eu sei sobre o livro ilustrado. “Kama Sutra”. – ele esperou nossa reação, mas nós dois éramos dois poços de indiferença – um de vocês, eu só posso concluir isso, trouxe esse... Esse tipo de literatura para nossa escola.
    - Isso é um beco sem saída, professor – falou Jotão, enfim.
    - Sim – confirmei – ninguém sabe com quem está o livro. Quando passa de um aluno para o outro, não deixam nenhum rastro. Ninguém sabe com quem está o livro, muito menos quem o trouxe. Um plano perfeito.
    O diretor sorriu desdenhosamente.
    - Eu sei que, para cachorros grandes como vocês, isso não é problema - o bom Silva sabia jogar – não sei a quem recorrer e, por isso, estou colocando essa tarefa para os dois. Se foi um de vocês, tenho certeza que irão conseguir chegar até o livro. Se não for... Bem, eu não conheço ninguém melhor nessa escola para descobrir.
    - E se não fizermos? – arrisquei a pergunta.
    - Haverá punição – falou, curto e grosso, esse diretor. Gente fina!
    Obviamente estávamos em uma situação delicada. Jotão e eu não tínhamos a melhor ficha da escola. Sempre fomos os responsáveis pelos problemas colegiais, embora eu não soubesse nada sobre quem, de fato, infiltrou o mestre-Yoda-do-sexo-versão-celulose em nossa amável instituição de preceitos éticos questionáveis.
    - Vocês... – falou Silva – têm até o meio-dia de hoje para me trazer livro e responsável por ele.
    - Espera, senhor! – queixou-se Jotão – como espera que ‘fazemos’ isso?
    - Façamos – eu disse, cínico.
    Jotão me encarou com fúria e, em retribuição, dei uma piscadela bem camarada.
    - Não sei e, na verdade, isso não é minha maior preocupação – disse o Silva – apenas quero o livro. Aquele que o trouxer receberá absolvição pelo incidente com o mastro. Vocês estão dispensados da aula hoje, podem se dedicar a essa tarefa, sim?
Opa, uma competição, eu logo senti o cheiro. As coisas estavam ficando interessantes.
    - Sem mais, rapazes. Podem ir – e, dizendo isso, o diretor colocou seus óculos bifocais, muito antigos por sinal, e pôs-se a ler um papel qualquer em sua mesa. Com certeza estava bancando o diretor durão.
    Jotão, frustrado, deixou sua cadeira e saiu da sala. Levantei-me vagarosamente, pronto para ir e decidido em cumprir aquela missão, quando meus olhos encontraram um peculiar objeto, totalmente destoante, naquela sala que transpirava formalidade.
    Caminhei rumo à estante de livros do Silva, ele levantou a cabeça e observou meu movimento. Ali, entre um volume de Tolstoi e Dostoievsky, havia um único CD. Puxei-o.
    - Let There Be Rock – murmurei – o senhor gosta de AC/DC? Esse álbum é o melhor.
    Ele demorou a responder, mas eu esperei.
    - Esse é o momento em que você tenta criar um elo comigo e, assim, conseguir algum benefício? – perguntou ele, sarcástico.
    Eu apenas sorri para mim mesmo. Eu não era tão estúpido assim. Mas o diretor não se convencia disso.
    - Conhece Dog Eat Dog? – ele perguntou.
    - Cão come cão – murmurei para mim mesmo – uma boa música.
    Silva assentiu.
    - Acho que temos dois vira-latas nessa escola – disse ele, enfim. Nesse momento, eu sabia a quem ele se referia. Jotão e eu – nos últimos anos eles têm cagado no meu carpete. Eu não gosto que sujem o chão onde piso, Dante.
    Dante, esse era meu nome, homenagem ao grande escritor, o que pareceu incomodar o amante de livros diretor Silva.
    - Não se preocupe, diretor Silva – eu disse, colocando de volta o CD em seu devido lugar – até amanhã teremos um livro inteiro para limpar a sujeira.
    Deixei a sala com o sorriso mais besta da história, convencido de que era um bom desfecho. A música ficou presa na minha cabeça desde então. “Francês come sapo, e eu como você”...

    Tempo era um fluido precioso, e o dia estava apenas começando. Um dos vira-latas do Silva estava correndo por aí, usando a força bruta para obter informações. Eu, por outro lado, tinha que abusar do meu cérebro, uma vez que meus músculos não poderiam me levar muito longe nessa missão. Mas eu tinha uma parceria bastante útil. Luis, o meu chapa para todas as horas, iria me ajudar nessa roubada. Sempre fomos grandes companheiros e, quando eu me dava mal ou me enfiava nas situações mais encagaçadas, meu parceiro tratava de me ajudar, ainda que isso não o agradasse na maior parte do tempo.
    - Alô, Luisão – eu estava no corredor, falando com o meu chapa pelo celular – preciso de um favor.
    - Outra furada – a voz do meu amigo estremeceu no outro lado da linha – não quero mais confusão pro meu lado, Dante.
    - Vai ser uma boa – menti descaradamente – vamos ajudar o Silva.
    Ele se manteve em silêncio e, apenas quando murmurou “ok, o que é dessa vez?”, eu contei toda a história.
    Ele não demorou a aparecer, ficou bastante interessado quando contei a ele sobre minha missão improvável de encontrar um livro até o meio-dia em uma escola de sacanas pervertidos. Luis tinha aquela habitual expressão de cansaço, como se nossa amizade fosse uma aventura desgastante. Bem, eu não o culpava, mas eu não podia me dar ao luxo de sentir remorso naquele momento. Eu precisava conseguir aquele manual do sexo e, de quebra, encontrar o safado que infiltrou em nossa escola aquela obra-prima.
    O sinal tocou, indicando o primeiro tempo.
    - Vamos nos separar – falei – tente descobrir quem está com o livro.
    - Descobrir? – Luis deu uma risada. Esse meu amigo era um cético – cara, isso é impossível. O livro passa de um aluno para outro, sem troca de nomes ou informações. É um sistema perfeito! Tem certeza que não foi você quem...?
    - Não, cara! Eu não tenho nada a ver com isso, infelizmente – fiquei surpreso quando respondi e notei certa inveja no meu tom de voz – Apenas tente. Vou em busca do nosso “fornecedor” de livros clandestinos.
    - Ok, só não espere muito de mim – pediu Luis – você sabe que eu não tenho essa... Bem, essa sua manha.
    Eu acenei e, sem nos despedirmos, nos afastamos. Cada um foi para um lado. Durante minha apressada caminhada pelo corredor vislumbrei meu “chapa” Jotão peitando um garoto do segundo ano nas proximidades do pátio. Eu tinha que admitir, o meu inimigo corpulento tinha uma eficiente forma de extrair informações, ainda que não fosse criativa. Percebi, naqueles olhos safados, que ele não dava a mínima para o responsável. Seu alvo era o livro, apenas isso. Dessa forma, ele escapava ileso do castigo que, por sinal, seria destinado a mim. Bem, éramos dois cães em um canil sem fronteiras. Seria interessante tê-lo como banquete nas próximas horas. Ao meio-dia.
    A primeira coisa que fiz foi entrar no banheiro, um dos lugares onde se ouve tudo o que não deveria ser ouvido. Fui sorrateiro, silencioso, o suficiente para perceber que o lugar não estava deserto.
    - A 26 é a melhor, com certeza – ouvi uma voz murmurando. Mantive-me escondido atrás de uma das cabines, ouvindo os rapazes conversando próximo ao mictório.
    - Que nada – disse outro, sua voz veio seguida do zup do zíper – a 42 é bem mais complexa. Quer dizer, que mulher consegue enrolar as pernas daquela forma?
    Bingo! Só poderiam estar falando de kama sutra. Um dos problemas em sistemas perfeitos é que a perfeição sempre é fodida por um panaca que adora falar de mais. Ali, no caso, havia três deles.
    - Qual é? – disse o outro – a 66 tinha aquela coisa com as mãos do cara sobre as costas da mulher! Ninguém supera aquela “coreografia”.
    E os três imbecis soltaram uma risada pavorosa. Eles caminharam até a pia e, assim, ouvi o som da torneira sendo ligada. Era essa a minha chance.
    - Alô, moçada! – exclamei, fingindo despretensão, como quem acaba de chegar - então, vejo que estão empolgados com a leitura construtiva extracurricular.
    Os três me olharam, rapidamente, e igualmente surpresos. Sorri, animado, e caminhei em direção ao mictório.
    - Vocês podem dizer o que quiserem – eu disse, enquanto dava aquela mijada, uma boa manobra para esfriar a cabeça e repensar o plano – Mas, sabe, a 42 tem um problema: a mulher precisa ser muito articulada. Ah, mas a 151, aquela sim!
    - Opa! Como assim, 151? – replicou um deles – são apenas 150!
    - Shh! – fez o outro.
    Morderam a isca.
    - Claro, você não quis ler as últimas páginas – caçoei – na dedicatória, o autor ensina a 151ª posição. Uma coisa de deixar qualquer um em transe...
    Houve um minuto de silêncio. O suficiente para pensarem a respeito.
    - Não sabíamos disso – disse, enfim, um deles – Droga, eu falei que devíamos ter lido até o final!
    - Ora – eu ri, convencido – deveriam ter me perguntado. O Dante aqui é ninguém menos que o mecenas dessa arte incomum na nossa escola. Fui eu quem trouxe o livro.
    - Ah, falou! – um deles riu, cético. Nesse meio tempo, caminhei até a pia e dei uma boa olhada na expressão do trio de toupeiras – Eu sei que não foi você.
    - Ah, você sabe – eu sorri, triunfante. Eu estava próximo da verdade – quer mesmo tirar o meu mérito?
    - Eu sei que não foi você, Dante! – queixou-se o rapaz – realmente pensamos que fosse você, no começo.  Mas, depois de conversar com a Paulete, nós...
    - Cala a boca, seu trouxa! – sibilou um dos amigos, golpeando o rapaz com uma cotovelada nada discreta – ela vai te arrancar os cabelos quando...
    - Ah, a Paulete – falei, sorrindo diante da primeira batalha vencida – então foi ela.
    - Olha, Dante, chapa, não fala nada com ela não – o delator tinha um tom de voz trêmulo, como se realmente temesse a garota. Bem, eu não o culpava por isso – ela vai me degolar se...
    - Ok, ok, rapazes – disse eu, fingindo nobreza – Não irei mencionar nenhum de vocês. Não se preocupem, sei muito bem como lidar com a Paulete.
    Saí do banheiro, incerto sobre minha afirmação anterior. Paula Pereira era a garota mais temida pelos alunos, por um simples advento: era filha de detento foragido e, segundo rumores, o homem andava pelos arredores da escola ameaçando os alunos que tentavam se aproximar da filha. Começaram a chamá-la de Paula do Cacete, mas, diante da preguiça juvenil em lidar com a semântica extensa, abreviamos para Paulete.
    Paula do Cacete era uma garota, como se diz... Do cacete mesmo. Não tinha papas na língua, atirava desde bolinhos de queijo até talheres pontiagudos nos alunos, se eles ousassem confrontá-la. Não que ela fosse monstruosa, pelo contrário. Era magra, delgada e, se não fosse tão doida, seria apenas bonita. Mas a vida irregular que ela levava - presente do papai enxadrezado – tornou-a uma jovem, no mínimo, insociável.
    Eu sabia onde encontrá-la. Sempre nos fundos da quadra. Alguns diziam que era o lugar onde Paulete se encontrava com o Papai Metralha, mas, diante da minha situação, o medo era a última coisa que se passava em minha mente.
    Enganei-me, a princípio. O segundo tempo estava para começar e, no entanto, Paula não estava em seu canto costumeiro. Não me restou nada, a não ser esperar.  Em algum momento, eu tinha certeza, ela iria aparecer.
    Encarei meu relógio, travamos um diálogo em que eu dizia “merda”, ele dizia “tic” e, quando finalmente eu decidia alternar o palavrão, ele replicava um “tac” desdenhoso que me fez chiar de impaciência.
    Ah, mas eu estava para me satisfazer. Quando dei por mim, alguém tentava pular o muro. Uma jovem ficou dependurada no alambrado, olhando para baixo e murmurando alguma coisa. Finalmente, depois de algum tempo, emergiu da barreira de concreto uma cabeça careca e de aspecto severo. Só podia ser o pai foragido. Ele beijou a filha com um pesar que chegou a me comover e, então, saltou novamente, desaparecendo de vista. Ela pousou silenciosamente no chão, olhando para os lados. Quando, finalmente, seu olhar cauteloso fixou-se em mim, ela gelou. Percebi o rosto pseudo-angelical de Paulete se tornando branco feito cera. Acenei, amigável.
    Ela tentou se afastar, caminhando pelos fundos. Ah, então seria assim! Nem pensei duas vezes, corri atrás dela. Por mais que ela tentasse correr, suas perninhas mimosas não eram suficientes para se afastar de mim. Alcancei-a em um quarto de minuto.
    - Hei, um momento, dama! – exclamei, segurando-a gentilmente pelo braço.
    Ela se esquivou e, por muito pouco, não me acertou um soco bem dado. Seu punho fechado assobiou próximo do meu nariz, mas consegui desviar.
    - Dante, seu meleca! – chiou ela, furiosa. Que linda era ela, eu percebi – O que pensa que está fazendo?
    - Eu ia te fazer a mesma pergunta – sorri, travesso. Ela entendeu exatamente o que eu quis dizer.
    - Oh, não... – ela gaguejou, lançando sua mão sobre o meu ombro – você viu? Você viu, não viu? Merda do caramba...
    - Não se preocupe, Paula – apressei em dizer – Não vou falar nada sobre seu pai. Não sou delator.
    Ela me olhou, desconfiada. Eu não culpava Paulete por considerar todos os homens indignos de confiança. O homem que deveria ser seu maior exemplo era um modelo legítimo de vagabundo.
    - O que você quer aqui, Dante? – ela perguntou, enfim.
    - Sem delongas, certo? – eu disse, exibindo um sorriso amigável – eu preciso que você venha comigo e confesse que foi você quem trouxe o livro para a escola... Não faça essa cara de desentendida! O Kama Sutra!
    - Quem? Eu? – ela pareceu dividida pelo desejo de rir e me socar – Dante, você é um cara esperto, mas é cego. Obviamente não fui eu quem trouxe o livro. Mas, sim, eu estava com ele há poucos dias e entreguei-o para uns imbecis do segundo ano... Ah, claro, provavelmente foram eles quem falaram sobre mim.
    - Não vou mentir, Paula. Foram esses mesmos – ah, o gosto do prazer. Eu não fui com a cara daqueles otários e vê-los se borrando de medo seria divertido – mas preciso que me diga. Com quem conseguiu o livro?
    Ela me olhou novamente e, dessa vez, parecia confusa. Será que ela também pensava que era eu?
    - Você tem certeza que não sabe? – ela perguntou – eu achei que... Bem, em todo o caso não posso dizer minha fonte, não sou eu quem vai quebrar o sistema perfeito. Como você disse, eu não sou delatora. Mas posso dizer que o livro está com um garoto do terceiro ano, pelo que fiquei sabendo.
    “Pelo que fiquei sabendo”. Com certeza, o sistema era perfeito, mas as pessoas eram estupidamente falhas. É claro que um esquema como esse seria apenas uma utopia. Minhas preocupações, no entanto, eram outras.
    - Eu quero um nome, Paula. Seja rápida, e eu saio do seu caminho.
    Ela pareceu tentada com a proposta.
    - Cesar Medeiros. O cara pegou o livro com os imbecis do segundo ano dias atrás. Mas não vai ser fácil conseguir tirar o livro dele. O cara é anti-social pra burro.
    - Deixa que eu cuido do resto – respondi, finalizando – boa sorte... Com tudo.
    Ela assentiu.
    Eu estava a uns passos de distância da quadra quando meu celular tocou. Era o Luisão.
    - Fala, Grande.
    - Você conseguiu? – ele perguntou sem delongas em sua voz estática.
    - Estou em uma trilha fresca – falei.
    Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
    - Ok, estou seguindo uma pista, também – ele disse, enfim – te ligo mais tarde.
    E desligou. O meu amigo parecia mesmo abatido, pensei comigo.
    Levei um bom tempo para encontrar Cesar Medeiros. Estava quase na hora do intervalo e o miserável parecia ter virado fumaça. Rondei os corredores, ignorei a sirene da troca de horários e fugi da coordenadora umas duas ou três vezes até, finalmente, encontrar o dito entrando na biblioteca. Realmente, o cara era um devorador de livros do caramba!
    Embrenhei-me na sala silenciosa e mortiça, era como se tudo ali implicasse com a minha presença, eu definitivamente não era bem-vindo nos domínios obscuros da bibliotecária de olhos fundos. Foi justamente ela quem me lançou aquele olhar que, sem palavra alguma, convenceu-me de que minha boca fechada seria uma boa opção.
    Avistei o sujeito sentado no fundo, próximo a uma estante velha com cheiro de antigo. Ele tinha em mãos uma revista científica bem robusta, mas não foi o suficiente para encobrir um pequeno livro de capa vermelha entre as páginas explicativas da nebulosa de Orion. Eu reconheceria aquele livro em qualquer lugar. Era o Kama Sutra!
    Caminhei, a passos largos, na direção do sujeito, silencioso mas ligeiro. O problema foi que o cara percebeu minha aproximação e, sem nenhuma explicação, envolveu o livro na revista e se levantou. Ele estava fugindo! No duro! Alguma coisa muito estranha tava rolando por aqui! Como ele sabia? Ele tinha que saber, não tinha? Talvez Paulete tivesse dito alguma coisa, ou quem sabe os pamonhas dedos-duros que encontrei no banheiro.  Ou poderia ser alguém mais... Claro que não!
    Cesar corria rápido demais para um sujeito grandalhão e desengonçado e, depois de disparar biblioteca afora, comigo ao seu encalço, fiquei convencido de que alguém tinha dado com a língua nos dentes. Acontece que o cara desapareceu no corredor movimentado. Para o meu azar era hora do intervalo, e a moçada se espalhou que nem a dengue lá no meu bairro, e não deu pra fazer mais nada. Enfiei a mão nos bolsos, frustrado, peguei meu celular e liguei. Alguma coisa me incomodava. A chamada não estava completando. Meu ‘broder’ Luisão não estava a fim de papo. “Quando você faz um acordo, você sabe em quem confiar?”…

    Passei as próximas horas vagando pelo colégio. Não havia sinal de Cesar Medeiros, nem de Jotão, muito menos do meu amigo. Eu estava numa maré de azar repentina e, pra piorar, a coordenadora surgiu do nada, que nem assombração, chamando-me pelo nome.
    - Dante! – falou ela com uma voz repolhuda que combinava muito bem com sua pequinesa e barriga volumosa – Dante, rapaz! O diretor quer falar com você!
    Olhei meu relógio. Droga! 11:49. Onze minutos para resolver minha situação. Ah, as coisas não estavam indo bem. Saí em disparada, ignorando os avisos agressivos da coordenadora, virei pelo primeiro corredor, enquanto discava em meu celular o número do Luisão. Nada. Novas desconfianças começaram a surgir e quando, finalmente, dei de cara com o diretor Silva, percebi o que estava rolando. Ele tinha em mãos um livro vermelho com duas linhas douradas que lembravam a silhueta delgada de uma mulher sexy. Acima, as escritas em preto-carvão “Kama Sutra” reluziam a minha derrota... “Someone win, someone lose”...

    A sala do diretor tinha um aroma diferente. Parecia excremento humano, mas não foi difícil entender que o cheiro brotava das calças encardidas do Jotão. O cara era um medroso miserável, a perspectiva em ser castigado acabou sacaneando o intestino do vira-lata. Mas minha mente estava mesmo era ocupada, pensando no momento em que Cesar fugiu e, momentos depois, lá estava o livro nas mãos do Silva. Eu fui sacaneado, isso era um fato. Pior, eu sabia quem era, tinha certeza agora. Eu estava sozinho.
    - Estou satisfeito em saber que alguém nessa escola ainda respeita os bons costumes – a voz triunfante do diretor reverberou nos corredores do meu crânio, e eu quis cuspir no safado – O livro está em minhas mãos e, de quebra, os dois suspeitos.
    Jotão chiou feito um frangote ao meu lado, eu bem que quis mandar ele trocar as cuecas sujas, mas suspeitei que Silva fosse interpretar isso como uma afronta a sua autoridade.
    - Bem, devo presumir que um de vocês é o responsável por isso? – ele perguntou, balançando no ar o livro cor de sangue.
    - Eu não sou – falou Jotão prontamente, mas eu apenas acenei negativamente, tirando o meu traseiro da reta.
    - Algum de vocês sabe quem foi, pelo menos? – a pergunta do Silva não teve resposta.
    Mas é claro que eu sabia! Agora eu sabia! Infelizmente eu não tinha provas e, com certeza, Silva jamais acreditaria em mim sem uma boa evidência. Era o preço por ser o maior foda da escola.
    - Então não vejo outra alternativa... Os dois serão punidos, não pelo livro, obviamente, mesmo porque não tenho provas...  Mas serão castigados pelo incêndio no mastro da bandeira. E, posso garantir, será um castigo lindo.
    Eu nunca gostei daquele sorriso superior do Silva!

    Saí da diretoria com a postura resignada, o castigo seria de arrancar o meu couro, mas eu não me importava. Havia outro assunto a tratar. Por sorte não precisei procurar muito. Luisão estava encostado numa pilastra, braços cruzados e inexpressivo, me encarando de um jeito que eu não consegui decifrar.
    - Parece que você não se deu muito bem – falou ele, e eu mal percebi o tom de cinismo na voz.
    - Foi você, não foi? – perguntei – desde o momento em que te coloquei nessa, era como se eu estivesse cada vez mais distante da verdade. Paulete sabia, Cesar sabia...
    - Eu sinto muito, irmãozinho – ele deu de ombros e, então, exibiu seu velho e querido sorriso cansado – mas eu não permitiria que você revelasse o que há por trás da minha fachada.
    E eu comecei a entender.
    - Ser seu amigo tem suas vantagens, Dante – ele explicou com uma formalidade que me irritou – eu sempre estou debaixo da sua sombra e, assim, ninguém vê o que realmente faço. O livro, a infiltração do pai da Paula no colégio... Eu tento ser um faz-tudo. Uma espécie de rei do crime colegial.
    - Entendo... Então, de certa forma, eu sou o laranja.
    - Sinto muito, parceiro.
    E o que me restava fazer? Encarei meu grande amigo e sorri frustrado por sentir orgulho daquele bastardo.
    - Só fiquei curioso – ele quebrou o silêncio – por que você não me dedurou?
    - E eu tinha provas, por acaso? – dei de ombros – além do mais, se isso acontecesse... Como eu iria me vingar depois?
    Passei pelo meu camarada Luisão, dei um tapinha amigável no seu ombro e continuei minha caminhada. Eu tinha confiado na pessoa errada, tinha me metido em problemas e, no fim das contas, o menor suspeito era o cão fodão do pedaço. Mas era isso mesmo. Todo vira-lata tem o seu dia. Deixei que Luisão aproveitasse o dele. Muito em breve ele seria o cardápio. É como dizem, “é olho por olho, dente por dente”.

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Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos