O cheiro de dálias dançava no ar, acompanhado pelo hálito quente que brotava da garganta escura da floresta. Folhas amarelas brincaram na noite, seguindo fielmente o caminho indicado pelo vento. Pétalas azuis faziam o mesmo, misturando-se entre a fuligem cintilante. Uma carruagem, agora reduzida a carvão e lona puída, crepitava seu último fôlego de chama na encosta da estrada. Ao lado, uma placa fincada às pressas indicava um caminho entre as árvores. “Simmeah”, era o que diziam as letras riscadas com pedras de calcário.
Vultos disformes embrenhavam-se nas copas das árvores. Os galhos mais baixos guarneciam silhuetas humanoides cobertas por túnicas tão negras quanto a própria noite sem estrelas. Não era possível ver nada além das chamas tímidas que queimavam a madeira. No horizonte da estrada, uma luz amarela e rala aproximava-se em velocidade constante, indicando uma segunda carruagem.
Os vultos estremeceram, e um chiado brotou da noite, como uma gargalhada rouca e malevolente. Uma coruja piou indiferente, mas bastou o ar assobiar para a ave cair dura no chão, um dos olhos perpassados por uma flecha confeccionada com penas de abutre. A carruagem aproximava-se a alegria doentia da noite aumentava.
Já não era apenas uma luz no horizonte. As rodas de faia protestaram diante da estrada acidentada, aproximando a carroça cada vez mais das árvores cujos galhos abrigavam os vultos. As cinzas azuladas misturaram-se na poeira levantada pelo carro e, num ímpeto calculado e já bem praticado, os vultos saltaram de seus postos, pousando no chão como se fizessem aquilo todos os dias. E bem o faziam. Não eram chamados de saqueadoras por mero capricho.
Os cavalos assustaram-se com a aparição repentina da pequena quadrilha coberta de preto, e ergueram suas ferraduras, mas era inútil. Dois saqueadores, os maiores do bando, aproximaram-se dos animais e seguraram suas rédeas, e os cavalos cederam sem pestanejar. O Cocheiro, cujo rosto estava escondido por uma grande cartola de camurça, manteve sua cabeça baixa.
Os saqueadores observaram a reação. Ficaram intrigados à princípio. Normalmente os cocheiros eram os primeiros a abandonarem a cena, correndo pela mata e aparecendo dias depois em um vilarejo próximo, onde passariam o resto de seus dias em uma taberna servindo brutamontes e bárbaros que lutavam em nome de seus reis.
Mas aquele homem manteve seu posto. Um dos saqueadores aproximou-se, dando passos decididos. Ao que parecia, era o líder do bando. Sua cabeleira negra estava amarrada em um rabo de cavalo, seu rosto quadrado e áspero desenhado por um cavanhaque cheio de falhas. Seus olhos verdes e miúdos faiscavam nas órbitas, encarando o sujeito da carruagem. O líder ergueu um lampião a óleo, de forma que a luz banhasse o chão, mas mantivesse ocultas as faces, inclusive a do cocheiro.
- Um homem de coragem – falou em tom debochado. A voz do saqueador era tão fria quanto a noite, e sua risada dizia que não se importaria em matar um cocheiro metido a herói, caso demonstrasse alguma resistência – Muita coragem, devo dizer. Mas, sabe, eu costumo cear coragem antes de uma boa noite de sono. Mantenho os covardes vivos. Normalmente eles fazem um chá de freixo como ninguém.
Seus comparsas deram gargalhadas, e a noite inundou-se de risos estridentes. Mas nem mesmo as ameaças implícitas provocaram qualquer reação no cocheiro. Os risos cessaram, e o líder pareceu levemente irritado.
- O que foi? – perguntou ele, adicionando uns dois passos à frente – o gato comeu sua maldita língua? Porque isso seria uma pena. Meu amigo Teru, bem aqui, adora comê-las. Mas tudo bem, diga-me para onde foi o gato, nós o defumamos e o deixamos partir em paz... Sem o seu ouro, é claro.
Novas risadas abraçaram a floresta, e duas outras corujas piaram. Um guaxinim correu pela estrada, como se pressentisse o perigo. Na verdade, até mesmo a própria escuridão parecia se afastar da estrada, como se temesse ser engolida por algo muito mais obscuro do que o próprio breu.
- Bem, permita-me. – o chefe da quadrilha pigarreou e desenlaçou sua capa de couro, deixando que o pano pesado caísse sobre a grama – meu nome é Felnor. O Grande Ladrao.
E, dizendo isso, virou de costas, exibindo uma marca vermelha em sua nuca. Parecia ter sido marcada a ferro, como um gado é marcado para não se misturar aos outros. A carne avermelhada parecia pulsar.
A cicatriz era um círculo cujo interior estava marcado por uma forma octogonal, como o brasão de um reino, ou uma infantaria. Era difícil saber, mas ainda assim, era intimidador. Felnor voltou-se para sua vítima, esperando qualquer coisa, um tremor ou uma súplica. Mas nada aconteceu. Ele esperou, e o cocheiro nada disse. De repente, seu silêncio e sua postura inquebrável parecia zombar da eficiência do Grande Ladrão e seus bárbaros.
- Ora, seu patife! – o líder indignou-se. Nunca fora ignorado, sempre conseguia arrancar lamúrias ou protestos covardes de suas vítimas. Mas aquele homem não esboçava nenhuma reação. Estava congelado no assento. Imóvel – Quer morrer agora, ou prefere que eu arranque seus culhões e o faça engoli-los? Diga alguma coisa, homem!
O líder ergueu o lampião, transtornado, e a luz banhou as dezenas de rostos. Inclusive o cocheiro.
Uma massa de pele. Era apenas o que havia ali. Lisa, sem olhos, nariz ou boca. Uma pele pálida e oval, como um rosto que não fora retocado com outros detalhes importantes, como a capacidade de falar, enxergar ou cheirar. Mas havia orelhas. Duas discretas fendas nas laterais do que deveria ser uma cabeça. O cocheiro, descoberto, ergueu o queixo, e a cartola escorregou sem cerimônia.
- AREEEEEEEEEEEE!
A floresta recebeu os gritos de espanto dos homens de bom grado. Provavelmente não queria contrariar a figura grotesca que ocupava o lugar de cocheiro. O líder, trêmulo, manteve suas mãos firmes, o lampião por pouco não caiu. Era um saqueador bem vivido, esperto, sabia como era importante a iluminação naquele momento. Se fosse preciso lutar, deveria saber onde estava enfiando sua espada.
Lançando mão no interior de seu colete de malha de aço, Felnor desembainhou uma espada longa e fina, como um florete, porém levemente mais grosso. A espada respondeu ao movimento com um reflexo prateado dançando no ar, pronto para o ataque.
- Criatura inferior! – bradou Felnor, nitidamente alarmado – somos muitos, não pode conter nossa fúria. Tome seu caminho, mas deixe-nos. Não nos obrigue...
- Shhhh...
Uma voz, não se sabia de onde, chegou aos ouvidos dos saqueadores.
O pedido de silêncio viera do interior da carruagem, e o timbre da voz lembrava o de uma mulher, jovem e, curiosamente, morta. Eles não sabiam explicar como ou porquê, mas a sensação de estar ouvindo a voz da morte golpeou-os de forma inusitada. A novidade deixou-os aturdidos, incapazes de reagir.
- A coragem é um elemento substituível, como o iodo em uma experiência que não deu certo – a voz feminina continuou, abafada por estar confinada dentro do carro, mas sabiamente escapava pelas frestas – um homem sem coragem alguma armado com fogo e pólvora enfrentaria um bando de ladrões. Mas a covardia... Esse elemento não se extrai de mineral algum. E ainda assim é como ferro derretido. Você pode forjar uma espada, ou pode produzir algemas. Pode usá-lo como arma, ou se prender na própria fraqueza.
Os homens não ousaram responder. A maioria por ser burra demais para acompanhar o discurso sombrio. Felnor, por outro lado, sabia muito bem que a mulher, fosse quem fosse, usava de suas palavras para zombar do bando. O cocheiro estremeceu, e sua face lisa enrugou levemente, como se... Temesse algo.
A porta da carruagem rangeu, e a fuligem fugiu de encontro às raízes das árvores. A voz soou, dessa vez mais nítida:
- Peço que não se incomodem com Holt. Meu fiel cocheiro não pode vê-los, nem mesmo sentir o fedor de vocês. Mas consegue ouvi-los perfeitamente. Pode até ouvir o que estão pensando.
A cabeça de Holt inclinou-se, afirmativamente.
- Quem... – Felnor tentou buscar sua voz em algum lugar. Seu estômago formigou e ele suspeitou que estivesse ali, mas logo percebeu que estava com medo. Petrificado de horror – Quem é você?
Um sapato vermelho reluzente tocou a terra úmida. O salto cravou em uma folha, galhos estalaram e a barra de um vestido vermelho e escarlate escorregou para fora da carruagem. A mulher acabara de deixar seu assento confortável no carro de faia. Ao fechar a porta, revelou-se uma jovem.
Cabelos negros tão intensos que seu brilho azulado parecia vivo e indiferente à luz tosca dos lampiões, agora acessos por vários saqueadores assustados. Sua pele era branca como poderia ser o próprio mármore. Linhas arroxeadas revelavam veias pulsantes em seu rosto, assim como suas mãos e braços nus. Apenas um espartilho de couro cobria seu tronco, sustentando uma silhueta que, se não fosse em tais circunstâncias, seria sedutora. O vestido arrastava-se no chão a medida em que ela dava passos suaves à frente. Seus olhos estavam ocultos por uma máscara de ferro, cujos parafusos pareciam ter sido perfurados em suas têmporas. Uma linha de sangue seco marcava as orelhas expostas.
Um dos homens de Felnor armou seu arco e apontou a seta na direção da mulher. Ela sorriu, encantada com a inocência do brutamonte imenso e barbado. Seu sorriso provocou a sensação de se estar vendo uma placa de gelo fendendo ao meio. Era frio, cruel e simples. Como a própria morte poderia ser numa noite como aquela.
- Eu tenho muito ouro – a mulher falou, sua voz banhou as árvores e, em resposta, elas farfalharam – e jóias, vejam. – exibiu longos dedos finos e adornados com anéis pesados – ouro, diamante. Safiras e esmeraldas. Viajei mundo afora em busca de meu tesouro.
- Não queremos seu ouro – falou, decidido, o líder do grupo – queremos ir em paz. Teru, abaixe essa maldita flecha.
O grandalhão hesitou. Olhou de seu chefe para a mulher misteriosa, dos cavalos para o cocheiro sem rosto. era surreal, mas fácil. A flecha estava apontada na direção da mulher. Bastava soltar a corda, e aquela maldita voz mortiça se calaria para sempre. Era, pelo menos, o que ele queria.
- Teru, seu imbecil – Felnor falou em tom urgente – abaixe esse arco.
- Mas... Chefe... Eu a tenho na mira – ele murmurou, enquanto grossas gotas de suor formavam-se em sua testa porosa – é só dizer, e eu disparo.
- Eu disse abaixe esse arco.
Mas Teru não o fez. Seu ímpeto de guerreiro e medo inexplicável comandava seus nervos e tendões. Soltou a corda, e a flecha cantou no ar.
Uma flecha poderia viajar muitos metros em um segundo, perfurar escudos e, com sorte, um tronco de árvore. Mas, em nenhum momento, ela poderia fazer uma curva tão sinuosa. Não como aquela. Não aquela curva rápida e irrepreensível, enquanto a seta mudava seu curso, e a ponta afiada atravessava o olho esquerdo de Teru, invadindo a órbita de seu crânio e fazendo um estrago interessante. A ponta de metal varou pela nuca. E o corpo imenso do saqueador pendeu para o lado, como um saco de feno. Bateu no chão com um baque surdo e não se mexeu mais.
Não houve grito, ou ruído de pavor. Apenas expressões petrificadas, como se o próprio mal estivesse encarnado ali, bem na frente deles. Uma flecha não fazia curva. Homens não podiam não ter rostos... E a morte não deveria ser capaz de falar.
- Eu não sou a morte – informou a mulher, rindo divertida – não é o tipo de cargo que me atice a tentação. Sabem, ser a morte é assumir o compromisso de respeitar as decisões, responder ao tempo certo de cada um, conforme suas escolhas. Eu... Bem, eu não me importo com o que as pessoas escolhem. Eu faço o que faço e ninguém me questiona. Eu sou Quantëe.
Dito isso, um homem berrou. No meio do grupo de saqueadores, um dos ladrões fora arremessado para o alto, sumindo na escuridão. Todos se afastaram e, involuntariamente, Felnor abraçou sua lamparina, sentindo sua urina escorrer pela calça de pano.
- Vocês são os homens que andam apavorando o trecho de Simmeah, não são? – perguntou Quantëe, entediada Simmeah é uma cidade maravilhosa, e me incomoda saber que outros viajantes sejam privados desse prazer, tudo porque uma escória como vocês precisam atender a caprichos gananciosos.
- Nós não... – Felnor perdeu sua voz. Não por medo. Subitamente, sentiu sua boca formigar, e inúmeras e minúsculas perninhas escamosas começaram a tatear sobre sua língua pesada – gahhh...
Sua voz morreu. No lugar dela saiu de sua boca inúmeras salamandras. Pequenas como uma jóia, reluzentes como os próprios cabelos de Quantëe, porém asquerosas como a própria morte o seria em seu estágio mais apavorante. Felnor sentiu seus joelhos cederem e, sem resistência, caiu. Tentou apoiar-se com as mãos, mas elas também formigavam. Sua pele revolvia como um lençol atiçado pelo vento, inúmeras salamandras caminhavam abaixo da derme do saqueador, perfurando seus vasos e mordiscando tendões, arrebentando os músculos e roendo as cartilagens.
Felnor desejou ser capaz de gritar, mas sua boca estava entupida de pequenos anfíbios. Os olhinhos das salamandras refletiam uma luz verde tremeluzente, e na noite densa, a impressão era de que o saqueador estava vomitando vaga-lumes.
A terra, fofa e umedecida pelo ar molhado, iniciou uma dança, um pequeno tremor que só se podia sentir com muita observação. O solo se abriu em inúmeras fendas, e outras milhares de salamandras minúsculas caminharam pelas pernas dos ladrões, agora apavorados.
Ninguém se incomodou com o corpo inerte de Felnor, reduzido a ossos e pele carcomida, uma figura cadavérica. As salamandras abandonaram o corpo disforme do líder e correram, travessas, para as outras vítimas, que nada podiam fazer a não ser gritar e ter suas pernas decepadas por mordidas fervorosas.
- Vamos embora, Holt – falou Quantëe, retornando ao seu assento na carruagem – deixe as salamandras brincarem, enquanto tomo um bom banho quente. O clima dessa floresta não favorece minha beleza singular.
Holt acenou positivamente e, num chacoalhar rápido da rédea, os cavalos iniciaram a caminhada, passando pelos corpos devorados e ignorando as salamandras que queixavam-se antes de serem esmagadas por cascos pesados.
Trecho de Sioh, O espelho de Requiem
por Pedro Almada
Faça-me um único favor, Pedro: não pare jamais de escrever.
ResponderExcluirComo você tem talento e imaginação! *-*
Adorei, saboreei, arfei, a cada linha.
Obrigada por compartilhar.
Beijocas,
Lu
Parceira orgulhosa
Uou! Você escreve muito bem, adorei, adorei! Muito bom *-*
ResponderExcluirIsabela
Pedro, sem palavras meu amigo, para descrever o quanto gostei.
ResponderExcluirSua narrativa é soberba, recheada de detalhes que engrandecem o texto e passam ao leitor a medida exata do que está lendo.
Como disse a Lu: não pare nunca de escrever, pois é um deleite para o leitor.
bjos
Poxa, adorei o texto!
ResponderExcluirAchei bem criativo e denso, com abundância de sinônimos e descrições bem minuciosas!
Simplesmente amei o trecho:
A coragem é um elemento substituível, como o iodo em uma experiência que não deu certo, um homem sem coragem alguma armado com fogo e pólvora enfrentaria um bando de ladrões. Mas a covardia... Esse elemento não se extrai de mineral algum. E ainda assim é como ferro derretido. Você pode forjar uma espada, ou pode produzir algemas. Pode usá-lo como arma, ou se prender na própria fraqueza.
Posso estar enganada, mas pelo que li diria que é um ótimo observador, atento aos detalhes e com certeza: que possui um vocabulário excelente!
OBS: só fiquei com dó da corujinha! :}
até mais!
Prólogo da Leitura
1: Não pare de escrever.
ResponderExcluir2: Sioh, O espelho do Requiem? QUERO MAIS!!!!! *-*
Abraços, cara!
E quero mais de Inspirados... To louca pra saber o que vai acontecer... (Lá no Nyah =P)
Excelente narrativa. Desejei ler mais.
ResponderExcluirComo faz? :)
Grande abraço.
satierff.blogspot.com